sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Para Sacrificar uma Ovelha




Enquanto Joana berrava e a parteira tentava retirar - sem muito carinho - uma criança de seu útero, Zorardo, seu cunhado, pegou a lanterna e correu para o meio do pasto para tragar um cigarro de palha.
            Ele esperava ansiosamente pelo irmão, que enfim se tornaria pai. Mas naquele momento, Zé Tilápia não estava preocupado com isso. Era quase meia-noite e ele estava bebendo pinga com os amigos na cidadezinha próxima à fazenda em que moravam.
            Zorardo era muito grande, alto e negro, mas suas mãos tremiam. Mal conseguiu acender o cigarro. Um bebê tá nascendo, pensou o homem, puxando a palha virgem, onde meu irmão foi parar numa hora dessas? Inalar a fumaça intensa fez com que relaxasse por alguns instantes.
            - Béééééééééééé! Béééééééééééé! – O som ecoou por todo o pasto.
            - Droga, mas que mulherzinha... – murmurou Zorardo para si mesmo, enquanto ouvia sua cunhada agonizar, em gritos cada vez mais desesperados. – A vaca geme igual uma ovelha...
- Desculpe te decepcionar, cara. – disse uma voz rouca atrás de Zorardo – Mas são mesmo só as ovelhas balindo.
- Mas nós num criamos ove... – Zorardo arregalou os olhos ao perceber que não havia mais ninguém na fazenda naquela noite, exceto sua cunhada e a parteira. Assustado, se virou e perguntou – Quem diabos é você?
O velho usava uma camiseta branca básica, calça jeans e botina marrom. Era careca, mas os poucos fios de cabelo que lhe restavam eram brancos. Segurava um cajado de pastor, com uma curva trabalhada na ponta. Seus olhos azuis e seus lábios finos se contraiam em uma expressão divertida de sarcasmo.
            - Oh, eu não queria ser rude. Prazer em conhecê-lo, garoto. - disse, estendendo a mão para Zorardo. – Pode me chamar de Seu Proserpino. Eu comprei a fazenda do outro lado da estrada, mas as cercas são tão baixas que minhas ovelhas escaparam. Não queria causar todo esse transtorno.
            Desarmado pela simpatia do velho, Zorardo apertou a mão de Seu Proserpino, que estava rodeado de ovelhas.
            - Prazer, senhor. Pode me chamar de Zorardo. Me desculpa pela grosseria, é que eu ‘tô estressado pra caralho. ‘Cê veio de onde? Seu sotaque é certinho.
            - Não sei te falar, eu morei em muitos lugares, para falar a verdade. – respondeu o velho. – Se me permite perguntar, porque você está tão estressado?
            - O nenêzinho tá nascendo agora, logo ali no barraco. – explicou, apontando para a casa do irmão.
            - Ah, é sua primeira vez? Quero dizer, com esse negócio de pai? – perguntou Seu Proserpino, ao sentar em uma pedra e também acender um cigarro de palha.
            - O filho num é meu. É do meu irmão,  o Zé Tilápia, conhece? Ele é o dono da fazenda.
            Seu Proserpino fez que não com a cabeça e deu uma longa primeira tragada em seu cigarro. Depois soltou a fumaça lentamente e disse:
            - Se o filho não é seu, por que diabos está tão preocupado?
            Zorardo pensou por um instante. Ele bem que gostaria que o filho fosse seu, já que cuidava mais de Joana do que o irmão, que estava sempre bebendo e batendo na esposa.  Ele sabia que, no fim, ele acabaria criando o garoto.
            - ‘Tô preocupado atoa, pelo que parece. – e jogou o toco do cigarro no chão e imediatamente enrolou mais um bocado de fumo em outra palha.
            Seu Proserpino deu uma risada que logo se transformou em tosse.
            - A verdade é que eu também nunca me dei bem com meus irmãos. Mas não se preocupe com isso, garoto. Tenho o pressentimento que quando esse Zé Tilápia segurar o filho nas mãos começará a ver a vida de forma diferente.
            - Ah, ‘cê num conhece meu irmão. Ele é o maior filha’ da puta dessas terras.
            - Também tenho o pressentimento que isso em breve irá mudar. Sabe, garoto, muita gente me considera filho da puta também.
            - Ah, aposto que sim, senhor. – disse Zorardo, dando uma boa risada. – ‘Cê se importa de caminhar comigo até logo adiante? Só assim pro celular fica com sinal. Preciso ligar pro meu irmão.
            Apoiando seu cajado no chão, Seu Proserpino se levantou, se espreguiçou e fez que sim com a cabeça.
            O rebanho de ovelhas seguiam os dois homens e faziam “Méééééééé!”. Zorardo sacou o celular como se sacasse uma pistola e ligou para o irmão. “O telefone chamado encontra-se desligado ou...”
            - O desgraçado desligou o celular. – queixou-se Zorardo. – Como eu ‘tava falando, o senhor vai ter que se esforçar muito pra ser mais filha’ da puta que ele.
            - Talvez. – respondeu o velho – Em todo o caso, é melhor você tomar cuidado comigo. Não estou te ameaçando nem nada, mas vai chegar uma hora que eu vou acabar sendo um filho da puta com você. É inevitável.
            - ‘Cê já chegou bêbado em casa e espancou sua mulher?  - perguntou Zorardo, tentando provar seu ponto.
            - Bem... não. – respondeu Seu Proserpino, sem ponderar muito.
            - Você já comeu a esposa do seu irmão? Já separou um casal feliz?
            - Também não e acho que você pode parar por aí. Seu irmão ganhou a competição; nem eu sou tão filho da puta assim. A verdade é que, às vezes, preciso ser um pouco duro com as pessoas. Mas no final elas acabam entendendo o que eu faço. Sou uma pessoa que gosta das coisas tão certinhas, mas tão certinhas que... – Seu Proserpino gesticulou perplexo, fechando os punhos com força. - É difícil explicar. Sou uma espécie um discípulo da ordem.
            - Num é atoa que o senhor é um pastor de ovelhas. Isso diz muito sobre um caboclo.
            - Não muito, na verdade. – O homem jogou o toco do cigarro fora. – Eu já fui muita coisa nessa vida, sabe. Hoje sou pastor de ovelhas, mas sou bem velho. Quando você for velho vai entender o que estou dizendo. Agora eu preciso ir embora e guardar as ovelhas. Fique em paz, menino.
            - Vamos lá, eu te ajudo. – ofereceu Zorardo, entregando outro cigarro de palha para Seu Proserpino.
            - Eu aceito o cigarro, mas a sua ajuda, não. Volta pra casa que sua família vai precisar de você, menino.
            - Eu insisto, senhor. A verdade é que eu preciso distrair minha cabeça.
            - Tudo bem, então. Não suporto gente insistente. – brincou o pastor.
            Os passos de Seu Proserpino eram lentos e ele precisava se apoiar no cajado para andar. As ovelhas os seguiam, ritmadas com a vagareza da caminhada.
            - Você sabe por que me encontrou hoje?
            - Porque suas ovelhas pularam a cerca, senhor.
            - Eu menti para você. Minhas ovelhas nunca pulam a cerca. – Seu Proserpino deixou escapulir um momento para que Zorardo falasse alguma coisa, mas o momento passou e o silêncio prevaleceu por um tempo. Então ele continuou. – A verdade é que eu trouxe a Laninha para um último passeio, não é, Laninha? – perguntou o pastor, acenando para uma ovelha no meio do rebanho.
            - Méééééé! Mééééééééé! – retrucou a ovelha.
            - Êta, essa ovelha tá bem novinha e saudável pra morrer. – disse Zorardo, observando a ovelha. - O senhor vai fazer um banquete amanhã? Num esquece de me chamar, tá bom?
            - Comer? Não. Você não entendeu. Eu vou sacrificá-la.
            - Mas que diabos!? Num vai me dizer que cê participa desses cultos estranhos que matam os bichinhos...
            Seu Proserpino arregalou os olhos e deu uma puxada forte no cigarro.  Estava caçoando de Zorardo.
            - Longe disso, garoto. Eu apenas... me expressei mal. A ovelha vai morrer e não haverá janta para você amanhã, isso é tudo o que precisa saber.
            Eles caminharam em silencio por mais cinco minutos até chegarem perto da estrada.
            - Agora vem a parte difícil. Atravessar para o outro lado com quase cinquenta ovelhas.
            - O senhor quer que eu ajude ou...?
- Eu me viro sozinho daqui em diante. Obrigado pela ajuda, garoto.
            Quando virou para fazer o caminho de volta, Zorardo temeu que um carro passasse e atropelasse o Seu Proserpino. Por mais excêntrico que o velho fosse, ainda se tratava de um idoso com dificuldades para andar. Então ouviu o barulho de motor se aproximando. Quase cinquenta ovelhas, pensou Zorardo, que merda! Preciso voltar.
            Zorardo correu e conseguiu ver a cena bem diante de seus olhos: uma moto em alta velocidade corria na estrada. Seu Proserpino ainda caminhava no asfalto, embora estivesse quase chegando do outro lado. A explosão veio segundos depois, em um “bum” tão alto que mesmo depois que o som cessou, continuava a ecoar na mente de Zorardo.
            Do outro lado da pista, Seu Proserpino deu uma risada meio triste que continha uma expressão de “Eu te avisei que posso ser bem filho’ da puta”. Só então que Zorardo reconheceu a Yamaha azul do irmão, em pedaços. Uma ovelha bem novinha estava arrebentada na brita, junto ao corpo decapitado de um homem negro.
            Seu Proserpino parecia bem mais velho agora e trajava um terno preto, camisa preta, gravata preta e sapato preto. Diabos! pensou Zorardo, até seus olhos estão pretos! Ele ainda caminhava com dificuldade, apoiado no cajado que havia se transformado em uma enorme e reluzente foice. Seu Proserpino chegou próximo do corpo e estendeu a mão para o nada. Depois desapareceu.
            Quando Zorardo voltou para casa, a criança já havia nascido. Ele a beijou na testa e depois acenou para Joana. Não emitiu uma palavra sequer naquela noite. Que Joana descobrisse na manhã seguinte. Naquele momento ele precisava dormir e juntar forças para suas novas obrigações: Assumir aquelas terras com honestidade. Consolar Joana nos momentos de dor. Tornar-se um pai decente para a criança órfã.