Enquanto Joana berrava e a
parteira tentava retirar - sem muito carinho - uma criança de seu útero, Zorardo,
seu cunhado, pegou a lanterna e correu para o meio do pasto para tragar um
cigarro de palha.
Ele esperava ansiosamente pelo irmão, que enfim se
tornaria pai. Mas naquele momento, Zé Tilápia não estava preocupado com isso. Era
quase meia-noite e ele estava bebendo pinga com os amigos na cidadezinha
próxima à fazenda em que moravam.
Zorardo era muito grande, alto e negro, mas suas mãos
tremiam. Mal conseguiu acender o cigarro. Um
bebê tá nascendo, pensou o homem, puxando a palha virgem, onde meu irmão foi parar numa hora dessas? Inalar
a fumaça intensa fez com que relaxasse por alguns instantes.
- Béééééééééééé! Béééééééééééé! – O som ecoou por todo o
pasto.
- Droga, mas que mulherzinha... – murmurou Zorardo para
si mesmo, enquanto ouvia sua cunhada agonizar, em gritos cada vez mais
desesperados. – A vaca geme igual uma ovelha...
- Desculpe te decepcionar,
cara. – disse uma voz rouca atrás de Zorardo – Mas são mesmo só as ovelhas
balindo.
- Mas nós num criamos ove...
– Zorardo arregalou os olhos ao perceber que não havia mais ninguém na fazenda
naquela noite, exceto sua cunhada e a parteira. Assustado, se virou e perguntou
– Quem diabos é você?
O velho usava uma camiseta
branca básica, calça jeans e botina marrom. Era careca, mas os poucos fios de
cabelo que lhe restavam eram brancos. Segurava um cajado de pastor, com uma
curva trabalhada na ponta. Seus olhos azuis e seus lábios finos se contraiam em
uma expressão divertida de sarcasmo.
- Oh, eu não queria ser rude. Prazer em conhecê-lo,
garoto. - disse, estendendo a mão para Zorardo. – Pode me chamar de Seu Proserpino.
Eu comprei a fazenda do outro lado da estrada, mas as cercas são tão baixas que
minhas ovelhas escaparam. Não queria causar todo esse transtorno.
Desarmado pela simpatia do velho, Zorardo apertou a mão
de Seu Proserpino, que estava rodeado de ovelhas.
- Prazer, senhor. Pode me chamar de Zorardo. Me desculpa
pela grosseria, é que eu ‘tô estressado pra caralho. ‘Cê veio de onde? Seu sotaque
é certinho.
- Não sei te falar, eu morei em muitos lugares, para
falar a verdade. – respondeu o velho. – Se me permite perguntar, porque você
está tão estressado?
- O
nenêzinho tá nascendo agora, logo ali no
barraco. – explicou, apontando para a casa do irmão.
- Ah, é sua primeira vez? Quero dizer, com esse negócio
de pai? – perguntou Seu Proserpino, ao sentar em uma pedra e também acender um
cigarro de palha.
- O filho num é meu. É do meu irmão, o Zé Tilápia, conhece? Ele é o dono da
fazenda.
Seu Proserpino fez que não com a cabeça e deu uma longa primeira
tragada em seu cigarro. Depois soltou a fumaça lentamente e disse:
- Se o filho não é seu, por que diabos está tão
preocupado?
Zorardo pensou por um instante. Ele bem que gostaria que
o filho fosse seu, já que cuidava mais de Joana do que o irmão, que estava
sempre bebendo e batendo na esposa. Ele
sabia que, no fim, ele acabaria criando o garoto.
- ‘Tô preocupado atoa, pelo que parece. – e jogou o toco
do cigarro no chão e imediatamente enrolou mais um bocado de fumo em outra
palha.
Seu Proserpino deu uma risada que logo se transformou em
tosse.
- A verdade é que eu também nunca me dei bem com meus
irmãos. Mas não se preocupe com isso, garoto. Tenho o pressentimento que quando
esse Zé Tilápia segurar o filho nas mãos começará a ver a vida de forma
diferente.
- Ah, ‘cê num conhece meu irmão. Ele é o maior filha’ da
puta dessas terras.
- Também tenho o pressentimento que isso em breve irá
mudar. Sabe, garoto, muita gente me considera filho da puta também.
- Ah, aposto que sim, senhor. – disse Zorardo, dando uma boa
risada. – ‘Cê se importa de caminhar comigo até logo adiante? Só assim pro
celular fica com sinal. Preciso ligar pro meu irmão.
Apoiando seu cajado no chão, Seu Proserpino se levantou,
se espreguiçou e fez que sim com a cabeça.
O rebanho de ovelhas seguiam os dois homens e faziam
“Méééééééé!”. Zorardo sacou o celular como se sacasse uma pistola e ligou para
o irmão. “O telefone chamado encontra-se desligado ou...”
- O desgraçado desligou o celular. – queixou-se Zorardo.
– Como eu ‘tava falando, o senhor vai ter que se esforçar muito pra ser mais
filha’ da puta que ele.
- Talvez. – respondeu o velho – Em todo o caso, é melhor
você tomar cuidado comigo. Não estou te ameaçando nem nada, mas vai chegar uma
hora que eu vou acabar sendo um filho da puta com você. É inevitável.
- ‘Cê já chegou bêbado em casa e espancou sua
mulher? - perguntou Zorardo, tentando
provar seu ponto.
- Bem... não. – respondeu Seu Proserpino, sem ponderar
muito.
- Você já comeu a esposa do seu irmão? Já separou um
casal feliz?
- Também não e acho que você pode parar por aí. Seu irmão
ganhou a competição; nem eu sou tão filho da puta assim. A verdade é que, às
vezes, preciso ser um pouco duro com as pessoas. Mas no final elas acabam
entendendo o que eu faço. Sou uma pessoa que gosta das coisas tão certinhas, mas tão certinhas que... – Seu Proserpino gesticulou perplexo, fechando
os punhos com força. - É difícil explicar. Sou uma espécie um discípulo da
ordem.
- Num é atoa que o senhor é um pastor de ovelhas. Isso
diz muito sobre um caboclo.
- Não muito, na verdade. – O homem jogou o toco do
cigarro fora. – Eu já fui muita coisa nessa vida, sabe. Hoje sou pastor de ovelhas,
mas sou bem velho. Quando você for velho vai entender o que estou dizendo.
Agora eu preciso ir embora e guardar as ovelhas. Fique em paz, menino.
- Vamos lá, eu te ajudo. – ofereceu Zorardo, entregando
outro cigarro de palha para Seu Proserpino.
- Eu aceito o cigarro, mas a sua ajuda, não. Volta pra
casa que sua família vai precisar de você, menino.
- Eu insisto, senhor. A verdade é que eu preciso distrair
minha cabeça.
- Tudo bem, então. Não suporto gente insistente. – brincou
o pastor.
Os passos de Seu Proserpino eram lentos e ele precisava
se apoiar no cajado para andar. As ovelhas os seguiam, ritmadas com a vagareza
da caminhada.
- Você sabe por que me encontrou hoje?
- Porque suas ovelhas pularam a cerca, senhor.
- Eu menti para você. Minhas ovelhas nunca pulam a cerca.
– Seu Proserpino deixou escapulir um momento para que Zorardo falasse alguma
coisa, mas o momento passou e o silêncio prevaleceu por um tempo. Então ele
continuou. – A verdade é que eu trouxe a Laninha para um último passeio, não é,
Laninha? – perguntou o pastor, acenando para uma ovelha no meio do rebanho.
- Méééééé! Mééééééééé! – retrucou a ovelha.
- Êta, essa ovelha tá bem novinha e saudável pra morrer. –
disse Zorardo, observando a ovelha. - O senhor vai fazer um banquete amanhã?
Num esquece de me chamar, tá bom?
- Comer? Não. Você não entendeu. Eu vou sacrificá-la.
- Mas que diabos!? Num vai me dizer que cê participa
desses cultos estranhos que matam os bichinhos...
Seu Proserpino arregalou os olhos e deu uma puxada forte
no cigarro. Estava caçoando de Zorardo.
- Longe disso, garoto. Eu apenas... me expressei mal. A
ovelha vai morrer e não haverá janta para você amanhã, isso é tudo o que
precisa saber.
Eles caminharam em silencio por mais cinco minutos até
chegarem perto da estrada.
- Agora vem a parte difícil. Atravessar para o outro lado
com quase cinquenta ovelhas.
- O senhor quer que eu ajude ou...?
- Eu me viro sozinho daqui
em diante. Obrigado pela ajuda, garoto.
Quando virou para fazer o caminho de volta, Zorardo temeu
que um carro passasse e atropelasse o Seu Proserpino. Por mais excêntrico que o
velho fosse, ainda se tratava de um idoso com dificuldades para andar. Então
ouviu o barulho de motor se aproximando. Quase
cinquenta ovelhas, pensou Zorardo, que
merda! Preciso voltar.
Zorardo correu e
conseguiu ver a cena bem diante de seus olhos: uma moto em alta velocidade
corria na estrada. Seu Proserpino ainda caminhava no asfalto, embora estivesse
quase chegando do outro lado. A explosão veio segundos depois, em um “bum” tão
alto que mesmo depois que o som cessou, continuava a ecoar na mente de Zorardo.
Do outro lado da pista, Seu Proserpino deu uma risada
meio triste que continha uma expressão de “Eu te avisei que posso ser bem filho’
da puta”. Só então que Zorardo reconheceu a Yamaha azul do irmão, em pedaços.
Uma ovelha bem novinha estava arrebentada na brita, junto ao corpo decapitado
de um homem negro.
Seu Proserpino parecia bem mais velho agora e trajava um
terno preto, camisa preta, gravata preta e sapato preto. Diabos! pensou Zorardo, até
seus olhos estão pretos! Ele ainda caminhava com dificuldade, apoiado no
cajado que havia se transformado em uma enorme e reluzente foice. Seu
Proserpino chegou próximo do corpo e estendeu a mão para o nada. Depois
desapareceu.
Quando Zorardo voltou para casa, a criança já havia
nascido. Ele a beijou na testa e depois acenou para Joana. Não emitiu uma
palavra sequer naquela noite. Que Joana descobrisse na manhã seguinte. Naquele
momento ele precisava dormir e juntar forças para suas novas obrigações:
Assumir aquelas terras com honestidade. Consolar Joana nos momentos de dor. Tornar-se
um pai decente para a criança órfã.