sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Para Sacrificar uma Ovelha




Enquanto Joana berrava e a parteira tentava retirar - sem muito carinho - uma criança de seu útero, Zorardo, seu cunhado, pegou a lanterna e correu para o meio do pasto para tragar um cigarro de palha.
            Ele esperava ansiosamente pelo irmão, que enfim se tornaria pai. Mas naquele momento, Zé Tilápia não estava preocupado com isso. Era quase meia-noite e ele estava bebendo pinga com os amigos na cidadezinha próxima à fazenda em que moravam.
            Zorardo era muito grande, alto e negro, mas suas mãos tremiam. Mal conseguiu acender o cigarro. Um bebê tá nascendo, pensou o homem, puxando a palha virgem, onde meu irmão foi parar numa hora dessas? Inalar a fumaça intensa fez com que relaxasse por alguns instantes.
            - Béééééééééééé! Béééééééééééé! – O som ecoou por todo o pasto.
            - Droga, mas que mulherzinha... – murmurou Zorardo para si mesmo, enquanto ouvia sua cunhada agonizar, em gritos cada vez mais desesperados. – A vaca geme igual uma ovelha...
- Desculpe te decepcionar, cara. – disse uma voz rouca atrás de Zorardo – Mas são mesmo só as ovelhas balindo.
- Mas nós num criamos ove... – Zorardo arregalou os olhos ao perceber que não havia mais ninguém na fazenda naquela noite, exceto sua cunhada e a parteira. Assustado, se virou e perguntou – Quem diabos é você?
O velho usava uma camiseta branca básica, calça jeans e botina marrom. Era careca, mas os poucos fios de cabelo que lhe restavam eram brancos. Segurava um cajado de pastor, com uma curva trabalhada na ponta. Seus olhos azuis e seus lábios finos se contraiam em uma expressão divertida de sarcasmo.
            - Oh, eu não queria ser rude. Prazer em conhecê-lo, garoto. - disse, estendendo a mão para Zorardo. – Pode me chamar de Seu Proserpino. Eu comprei a fazenda do outro lado da estrada, mas as cercas são tão baixas que minhas ovelhas escaparam. Não queria causar todo esse transtorno.
            Desarmado pela simpatia do velho, Zorardo apertou a mão de Seu Proserpino, que estava rodeado de ovelhas.
            - Prazer, senhor. Pode me chamar de Zorardo. Me desculpa pela grosseria, é que eu ‘tô estressado pra caralho. ‘Cê veio de onde? Seu sotaque é certinho.
            - Não sei te falar, eu morei em muitos lugares, para falar a verdade. – respondeu o velho. – Se me permite perguntar, porque você está tão estressado?
            - O nenêzinho tá nascendo agora, logo ali no barraco. – explicou, apontando para a casa do irmão.
            - Ah, é sua primeira vez? Quero dizer, com esse negócio de pai? – perguntou Seu Proserpino, ao sentar em uma pedra e também acender um cigarro de palha.
            - O filho num é meu. É do meu irmão,  o Zé Tilápia, conhece? Ele é o dono da fazenda.
            Seu Proserpino fez que não com a cabeça e deu uma longa primeira tragada em seu cigarro. Depois soltou a fumaça lentamente e disse:
            - Se o filho não é seu, por que diabos está tão preocupado?
            Zorardo pensou por um instante. Ele bem que gostaria que o filho fosse seu, já que cuidava mais de Joana do que o irmão, que estava sempre bebendo e batendo na esposa.  Ele sabia que, no fim, ele acabaria criando o garoto.
            - ‘Tô preocupado atoa, pelo que parece. – e jogou o toco do cigarro no chão e imediatamente enrolou mais um bocado de fumo em outra palha.
            Seu Proserpino deu uma risada que logo se transformou em tosse.
            - A verdade é que eu também nunca me dei bem com meus irmãos. Mas não se preocupe com isso, garoto. Tenho o pressentimento que quando esse Zé Tilápia segurar o filho nas mãos começará a ver a vida de forma diferente.
            - Ah, ‘cê num conhece meu irmão. Ele é o maior filha’ da puta dessas terras.
            - Também tenho o pressentimento que isso em breve irá mudar. Sabe, garoto, muita gente me considera filho da puta também.
            - Ah, aposto que sim, senhor. – disse Zorardo, dando uma boa risada. – ‘Cê se importa de caminhar comigo até logo adiante? Só assim pro celular fica com sinal. Preciso ligar pro meu irmão.
            Apoiando seu cajado no chão, Seu Proserpino se levantou, se espreguiçou e fez que sim com a cabeça.
            O rebanho de ovelhas seguiam os dois homens e faziam “Méééééééé!”. Zorardo sacou o celular como se sacasse uma pistola e ligou para o irmão. “O telefone chamado encontra-se desligado ou...”
            - O desgraçado desligou o celular. – queixou-se Zorardo. – Como eu ‘tava falando, o senhor vai ter que se esforçar muito pra ser mais filha’ da puta que ele.
            - Talvez. – respondeu o velho – Em todo o caso, é melhor você tomar cuidado comigo. Não estou te ameaçando nem nada, mas vai chegar uma hora que eu vou acabar sendo um filho da puta com você. É inevitável.
            - ‘Cê já chegou bêbado em casa e espancou sua mulher?  - perguntou Zorardo, tentando provar seu ponto.
            - Bem... não. – respondeu Seu Proserpino, sem ponderar muito.
            - Você já comeu a esposa do seu irmão? Já separou um casal feliz?
            - Também não e acho que você pode parar por aí. Seu irmão ganhou a competição; nem eu sou tão filho da puta assim. A verdade é que, às vezes, preciso ser um pouco duro com as pessoas. Mas no final elas acabam entendendo o que eu faço. Sou uma pessoa que gosta das coisas tão certinhas, mas tão certinhas que... – Seu Proserpino gesticulou perplexo, fechando os punhos com força. - É difícil explicar. Sou uma espécie um discípulo da ordem.
            - Num é atoa que o senhor é um pastor de ovelhas. Isso diz muito sobre um caboclo.
            - Não muito, na verdade. – O homem jogou o toco do cigarro fora. – Eu já fui muita coisa nessa vida, sabe. Hoje sou pastor de ovelhas, mas sou bem velho. Quando você for velho vai entender o que estou dizendo. Agora eu preciso ir embora e guardar as ovelhas. Fique em paz, menino.
            - Vamos lá, eu te ajudo. – ofereceu Zorardo, entregando outro cigarro de palha para Seu Proserpino.
            - Eu aceito o cigarro, mas a sua ajuda, não. Volta pra casa que sua família vai precisar de você, menino.
            - Eu insisto, senhor. A verdade é que eu preciso distrair minha cabeça.
            - Tudo bem, então. Não suporto gente insistente. – brincou o pastor.
            Os passos de Seu Proserpino eram lentos e ele precisava se apoiar no cajado para andar. As ovelhas os seguiam, ritmadas com a vagareza da caminhada.
            - Você sabe por que me encontrou hoje?
            - Porque suas ovelhas pularam a cerca, senhor.
            - Eu menti para você. Minhas ovelhas nunca pulam a cerca. – Seu Proserpino deixou escapulir um momento para que Zorardo falasse alguma coisa, mas o momento passou e o silêncio prevaleceu por um tempo. Então ele continuou. – A verdade é que eu trouxe a Laninha para um último passeio, não é, Laninha? – perguntou o pastor, acenando para uma ovelha no meio do rebanho.
            - Méééééé! Mééééééééé! – retrucou a ovelha.
            - Êta, essa ovelha tá bem novinha e saudável pra morrer. – disse Zorardo, observando a ovelha. - O senhor vai fazer um banquete amanhã? Num esquece de me chamar, tá bom?
            - Comer? Não. Você não entendeu. Eu vou sacrificá-la.
            - Mas que diabos!? Num vai me dizer que cê participa desses cultos estranhos que matam os bichinhos...
            Seu Proserpino arregalou os olhos e deu uma puxada forte no cigarro.  Estava caçoando de Zorardo.
            - Longe disso, garoto. Eu apenas... me expressei mal. A ovelha vai morrer e não haverá janta para você amanhã, isso é tudo o que precisa saber.
            Eles caminharam em silencio por mais cinco minutos até chegarem perto da estrada.
            - Agora vem a parte difícil. Atravessar para o outro lado com quase cinquenta ovelhas.
            - O senhor quer que eu ajude ou...?
- Eu me viro sozinho daqui em diante. Obrigado pela ajuda, garoto.
            Quando virou para fazer o caminho de volta, Zorardo temeu que um carro passasse e atropelasse o Seu Proserpino. Por mais excêntrico que o velho fosse, ainda se tratava de um idoso com dificuldades para andar. Então ouviu o barulho de motor se aproximando. Quase cinquenta ovelhas, pensou Zorardo, que merda! Preciso voltar.
            Zorardo correu e conseguiu ver a cena bem diante de seus olhos: uma moto em alta velocidade corria na estrada. Seu Proserpino ainda caminhava no asfalto, embora estivesse quase chegando do outro lado. A explosão veio segundos depois, em um “bum” tão alto que mesmo depois que o som cessou, continuava a ecoar na mente de Zorardo.
            Do outro lado da pista, Seu Proserpino deu uma risada meio triste que continha uma expressão de “Eu te avisei que posso ser bem filho’ da puta”. Só então que Zorardo reconheceu a Yamaha azul do irmão, em pedaços. Uma ovelha bem novinha estava arrebentada na brita, junto ao corpo decapitado de um homem negro.
            Seu Proserpino parecia bem mais velho agora e trajava um terno preto, camisa preta, gravata preta e sapato preto. Diabos! pensou Zorardo, até seus olhos estão pretos! Ele ainda caminhava com dificuldade, apoiado no cajado que havia se transformado em uma enorme e reluzente foice. Seu Proserpino chegou próximo do corpo e estendeu a mão para o nada. Depois desapareceu.
            Quando Zorardo voltou para casa, a criança já havia nascido. Ele a beijou na testa e depois acenou para Joana. Não emitiu uma palavra sequer naquela noite. Que Joana descobrisse na manhã seguinte. Naquele momento ele precisava dormir e juntar forças para suas novas obrigações: Assumir aquelas terras com honestidade. Consolar Joana nos momentos de dor. Tornar-se um pai decente para a criança órfã. 

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Lagartas no Submundo






     A Primeira tirou o seio esquerdo pra fora. Em homenagem, lhe entreguei lascas de meus lábios. Seu pequeno mamilo gemeu em espasmos óbvios e as luzes de néon riram do cheiro de culpa.
     Pedaços das minhas unhas se cravaram na vulva melada e melancólica da Outra. Não era tão constante quanto deveria ser, mas seus ruídos eram tão presunçosos que precisei dar o toque:
-     Não estou te pagando! Quero que gemas como uma garota normal, pelo amor de Deus.
   Ela riu. E do riso vieram instruções estranhas:
-    Enquanto você a come, eu me cutuco. – disse - Depois é minha vez de virar mulher. Vou colocar uma musiquinha para dar o clima, pode ser?
     Ela se levantou, ligou o celular e deixou as músicas rodarem no shuffle.  Não sou lá muito fã de música caribenha, mas com medo de cortar o clima, não disse nada. Observando nossos toques lentos, a Primeira fez uma espécie de constatação:
 -     Se o quarto é escuro, estamos fadados a fazer coisas mais escuras ainda.
     Então ela olhou para o fundo dos meus olhos. E para o fundo dos olhos da Outra. Ao mesmo tempo. Estava vesga.
-     Ainda mais se houver tanta bebida. –concluiu, desmaiando na cama.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Entre Redemoinhos e Cães Perdidos




Júlio Navarro cortou a grama do campo, colheu as verduras da horta, recolheu os ovos das galinhas e voltou pra casa para almoçar. Sua esposa Glória o esperava com avental e panelas quentes. Felipe, seu filho de onze anos, o recebeu com um abraço. Rita, sua filha de sete anos, estava distraída e procurava por alguma coisa em todos os cantos da casa.
                - U que ocê tanto prucura, minha fia? – perguntou o Júlio.
                - É u Totó! Ele sumiu, se‘cridita? – Rita soou tão meiga que Júlio até esqueceu do vazio da barriga e se pôs a procurar o cachorro perdido.
                Ele fez uma busca nos arredores da terra. Sua pequena rocinha era rodeada por mato, e por essa razão precisou protegê-la com cercas de arame. Júlio procurou por Totó no quintal, no galinheiro, na horta, no pomar, no pastinho e até no cabriteiro, lugar em que o cão pequenino gostava de descansar e se esconder das tempestades.
                Júlio já havia desistido de encontrar pistas quando percebeu o que ocorrera. Próximo ao celeiro, em uma das extremidades da cerca, havia um buraco que não fora cavado por mãos de homens. Totó havia escapado para o mato.
                Quando o pai foi confrontar a filha e dizer-lhe o ocorrido, ele quis mentir. Mas não o fez, principalmente porque sabia que iria atrás do cão.
                - U Totó fugiu pru mato, fia. Dexa o pai armuçar que ele vai corrê atrás du danado.
                Uma montanha de arroz e feiJúlio, três bifes mal passados e dois ovos fritos, com a gema tão frágil quanto um nenê recém-saído da barriga da mãe: essa foi a refeição feita por Júlio Navarro antes de iniciar o que provavelmente seria a jornada mais perigosa da sua vida. Mas para que essa jornada tivesse êxito, ela necessitava de outro aventureiro.
                - Pai! Posso i pru mato cocê? – perguntou Felipe, já colocando o boné que havia ganhado de um político em sua viagem para a cidade.
                - Sei não, fio... I si o Totó foi pra muito longi?
                Glória, a esposa de Júlio, interrompeu a conversa.
                - Si ocê num fo vortá tardi, leva u minino pra da umas vortinha, Júlio.
                - Uai... intão tá. – A esposa conseguia convencer o mineirinho de qualquer coisa. Se a Glória falasse, estava falado. - Vai carçá a butina, fio.
                Enquanto Felipe calçava as botinas, Rita perguntou ao pai:
                - Se prometi que vai trazê u Totó de vorta? Eu quero brinca cum ele di manhãzinha.
                Júlio não sabia se devia prometer algo que não sabia se seria capaz de cumprir. Mas como se tratava de sua filha, ele resolveu arriscar.
                - Num posso prometê nada, fia. Mais vo tenta trazê ele de vorta. – Júlio agradou Rita com um cafuné.
                Felipe colocou sua roupa mais bonita. Ele costumava fugir para o mato, mas nunca ia para muito longe. E aquela ocasião tinha um tom de aventura, diferente dos passeios rasos e sem objetivos em que costumava fazer. A mãe errara: Não se tratava de um simples passeio, mas sim de uma expedição. Felipe precisava trazer Totó de volta para casa. Antes de sair, ele sussurrou no ouvido da irmã:
                - Ritinha, eu vo trazê u Totó de vorta. Eu prometo.
                Pai e Filho se agacharam e passaram pelo buraco que Totó cavara. Júlio olhou para cima e balançou a cabeça, aprovando o sol fraco daquela tarde. Felipe também olhou para cima, mas sem saber por quê. Só estava repetindo o que o pai fizera.
                - Fio, é mió a gente corrê pra pegá esse cão. Si anoitecê tamo lascado.
                Caminharam com passos calados. A vegetação estava fechada e densa. As pegadas de Totó eram inconstantes, mas havia uma trilha.
                - Ninguém consegui fugí sem sê encontrado, fio. As pessoa dexa rastro. – disse Júlio, apontando para as pegadas do cachorro.
                - Eu vo pegá u bicho inda vivo, se vai vê.
                - Ispero, fião. A Ritinha vai fica braba cu’a gente se num encontrarmo u Totó.
                - Pra ondi cê acha que ele foi?
                - Ah... Num sei. Achu que ele só quiria dá uma vortinha. Mais essas mata são pirigosa. Tão cheia di lobo guará, di onça i di cobra. U Totó é pititin dimais, é bicho indefeso.
                - Mais ele sabe sê bravu! Ô si sabe!
                - Ah isso ele sabe mes... Óia lá fio! Nu buraco daquela árvre!
                Felipe avistou o cão e disparou até a árvore.
                - Vem cá! Vem cá Totó!
                Quando chegou na árvore, viu um pequeno cãozinho indefeso. Ele era preto com as manchas brancas. Estava amedrontado e encolhido.
                - Ixiiiii.... Esse daí num é nosso cachorro não.
                - Uai... que qui um bichim como ocê tá fazendo aí? – perguntou Júlio, chamando o cão com a mão. – Vem cá... num pricisa tê medo não, nóis é gente boa.
                - Ele tá cum medo, pai.
                O cão começou a choramingar. Júlio tirou um pedaço de pano da mochila e o embrulhou nele.
                - Carminha... Carminha... Nóis vai cuidá docê.
                - Dexa eu passa a mão um poco, pai?
                - Tá baum, mais toma cuidado. O bichinho tá cum medo.
                Felipe acariciou a cabeça do pobre animal.
                - Se num viu um cão um poco mais incorpado que ocê? – perguntou o garoto, esperando que o cão começasse a falar ou apontasse para uma direção.
                - Tó ele procê, fio. Toma cuidado. Vamo continua procurano o Totó.
                A vegetação densa havia tampado o sol. O mormaço se extinguia. Júlio e Felipe estavam cada vez mais preocupados. Hora ou outra ouviam lamentos em forma de latidos e vislumbres de cães perdidos no meio do mato.
                - Òia ali, pai! Òia o tanto di árvre cortada!
                - Uai... Qui que isso?
                Havia centenas de bambus cortados e um imenso buraco no meio da mata. Júlio se aproximou e percebeu que o solo fora recentemente mexido. Havia pegadas humanas que não faziam sentido.
                - Uai... Isso aí é pegada di perneta. – disse Felipe.
                - Como que um perneta desse consiguiu cortá tanta árvre, fio?
                - AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!!! – A risada rouca ecoava de todas as direções.
                - Ai meu Deus... qui foi isso, pai?
                - Vem pra perto di mim, Felipe.
                Os dois se afastaram das árvores cortadas e se esconderam debaixo de um amontoado de pedras que formavam uma espécie de pequena caverna.
                - Fião, fica aqui iscondidim. Toma conta du cachorrinho. Eu vo lá vê u que tá aconteceno.
                Sozinho, Júlio caminhou mais um bocado até ouvir o som de cachoeira e água corrente. Escondido nas flores e folhas, ele avistou o corpo de um homem na beirada de onde caia a cachoeira.
                Ao se aproximar, percebeu que fazia uns meses que o homem morrera. O corpo tinha o cabelo ruivo e a pele era muito branca e cheia de sardas; ele usava um traje de aventureiro e um chapéu grande e marrom tampava seu rosto em decomposição. Ao seu lado jazia uma peneira com os arames enferrujados.
                Júlio abriu a mochila presa ao homem morto. Encontrou dois sacos de sal, cinco garrafas com uma cruz desenhada em suas rolhas, duas pistolas, dois frascos de água, uma estaca, uma corda amarrada com alhos e duas cruzes pequenas. Examinando a arma, Júlio percebeu que as balas eram de pratas.
                Já ouvira falar daquele homem antes. Há algumas semanas os policiais bateram em sua porta e perguntaram se ele havia visto um holandês de quarenta anos andando pela região. O homem viera ao Brasil para caçar sacis e estava desaparecido. Júlio sorrira aos policiais e explicara-lhes que não havia visto nada. Depois contara a história para a família na mesa do jantar e todos riram muito. Quem é que acreditava em Saci-Pererê?
                O riso que Júlio outrora dera agora se transformava em pavor.  Os sacis haviam matado o aventureiro, que achara exatamente aquilo que procurava. Júlio se lembrou das velhas estórias que a avó contava e transferiu as garrafas do holandês para dentro de sua própria mochila. Com sorte, elas funcionariam para prender os sacis. Depois se armou com as duas pistolas e a peneira, instrumento que nas lendas eram usadas para capturar os pequenos demônios. Júlio tinha certeza que os sacis estavam por trás do desaparecimento de Totó.
                Ao caminhar mais um pouco, Júlio começou a ouvir choros caninos e risadas roucas. Fez o sinal da cruz e rezou para que Felipe permanecesse quieto no esconderijo improvisado. Rezou também para a própria segurança; para que Deus o protegesse dos demônios que estava prestes a enfrentar.
                De longe viu luzes fortes. Rastejando, furtivo como uma cascavel, Júlio se aproximou do esconderijo dos Sacis. O lugar parecia um ninho. Havia palha a bambus em todo lugar. Cerca de três sacis pitavam cachimbos em volta de uma fogueira. Eles estavam assando carne. Atrás da fogueira, havia jaulas guardando dezenas de cães. Júlio percebeu que o animal assado podia muito bem ser Totó.
                Os sacis tinham a pele muito escura e usavam tocas vermelhas. Eles tinham olhos vazios e pretos e dentes pequenos e afiados.
                Júlio não tinha um plano. Mas precisava dar um jeito de acabar com os Sacis, soltar os cachorros e, quem sabe, achar Totó. Enquanto pensava em alguma coisa, um quarto saci chegou à fogueira carregando uma criança. Era Felipe.
                - Olhem só o que eu achei, pessoal. Joguem fora essa carne ruim de cachorro. Hoje nós vamos comer bisteca de criancinha! Mahahahahahahaha!
                - AHA EHE AHA EHE HAHAHA HUHU AHAHA EHEHEEEE!!! – as risadas demoníacas dos quatro sacis ecoavam em cada folha de árvore, em cada flor tropical e em cada pedaço da alma de Júlio Navarro.
                - Seja u que Deus quisé. – sussurrou Júlio, enquanto se armava com uma das pistolas.
                Sem anunciar sua chegada, Júlio acertou um dos sacis com um tiro na cabeça. A criatura caiu instantaneamente. Os outros olharam furiosos para o homem armado. Suas bocas se tornaram maiores e seus dentes ainda mais afiados. Agora sim estavam com o aspecto de verdadeiros demônios. Um deles derrubou Júlio e a pistola foi lançada para longe.
                Espalharam-se e se transformaram em pequenos redemoinhos. Júlio tentou acertá-los novamente com a segunda pistola que carregava, mas dessa vez as balas desviaram.  Então Júlio tentou jogar a peneira em um dos redemoinhos.  O demônio ficara preso! Enquanto fugia dos outros tornados, rastejou até a peneira e capturou o saci com a garrafa.
                Os dois sacis restantes vieram para cima de Júlio. Um deles pegou um pedaço de pau no chão e deu uma pancada em sua cabeça, o deixando desmaiado. Começaram a rir freneticamente. Então...
                BUM! BUM! BUM! BUM! BUM! BUM!
                Felipe não soube quantos tiros dera, mas os dois sacis caíram mortos. Então ele jogou a pistola no chão e tentou encontrar Totó nas gaiolas, mas não o achou. Quando Júlio acordou, Felipe já havia soltado todos os outros cães e estava cabisbaixo, acariciando o cãozinho que haviam encontrado mais cedo.
                - Pai, num achei o Totó. Acho qui us sacis cumeram ele.
                Júlio, pela primeira vez na vida, não respondeu nada. Geralmente soltava ao menos um incompreendido “Uai...”. Mas dessa vez só abaixou a cabeça.
                - Eu prometi pra Ritinha que ia trazê u Totó di vorta. I agora?
                - Agora cê pricisa fazê a coisa certa. Vai tê qui pidi discurpa pra sua irmã.
                - U qui eu vô fala qui aconteceu? Ninguém vai acriditá nessa história... nesse negóciu di saci.
                - A gente pensa im otra história pelo caminho.
                Já havia anoitecido quando Júlio e Felipe começaram a caminhada de volta. Eles não disseram nada um para o outro, mas os dois estavam pensando no que falariam quando chegassem em casa.
                Quando enfim retornaram ao lar, viram Glória e Rita preocupadas, andando de um lado para o outro na varanda.
                - Pruque demoraram tanto, Júlio?  - perguntou Glória, muito brava.
                - Mãe! – falou Felipe, antes que Júlio pudesse responde. -  Nóis achô u Totó, mais ele tava tão filiz cum uma cadelinha du mato que dexamo ele lá  memo. Mai nu caminho di vorta nóis acho esse póbrizinho aqui... Tava pirdido, chorano dibaxo duma árvre.
                O irmão mais velho passou o cãozinho para a irmã mais nova, que deu um grande sorriso e abraçou o animal. Naquela noite, Felipe deveria ter se deitado na cama com medo, paranóico com as diversas criaturas sombrias que estavam soltas pelo mundo. Mas ao invés disso, ele dormiu satisfeito. Satisfeito por ter feito parte de uma expedição perigosa. Satisfeito por ter salvado a própria vida e a vida do pai. Mas acima de tudo, satisfeito por ter conseguido cumprir a promessa que havia feito à sua irmãzinha.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Os Filhos de Estocolmo




Não há sol que me fizesse tão bem quanto aquele ou lugar que me deixasse mais feliz no mundo. Nasci na savana e vim do leão. Não posso dizer que era amigo da seca, mas acostumava-me a ela. A melanina intensa do meu corpo me fazia resistente e não havia calor demais que pudesse me tirar isso. Sou filho das noites sem mormaço: um garoto africano que vivera em onze anos mais do que um americano obeso vivera em cinquenta.
Já passei fome e uma vez quase fui comido por uma fera. Mas April McCarthy me encontrou e me levou para a ONG. Nunca entendi muito bem porque aquelas pessoas faziam aquilo tudo de graça, mas não me importei em ser resgatado. Conseguia comer bem e por alguns meses, tive uma vida feliz.
Além da gentileza e da bondade de April, havia outra coisa nela que me agradava mais: Seu belo par de seios. Devia ter por volta de vinte anos.  Ela era velha demais para mim, mas não me importava. Todas as noites a espiava na janela de seu trailer e me masturbava, embora nunca tivesse conseguido chegar ao clímax, como a maioria dos meus amigos se gabavam conseguir.
Mas April McCarthy era meu segredo; meu louro e delicado segredo. Ninguém sabia que, antes de se trocar, April gostava de deitar nua por alguns minutos na cama para chorar. Ninguém sabia que April quase se casou uma vez, mas seu noivo morreu em um acidente de carro junto com um traveco prostituto. Mas April me contou tudo. Ela também sabia que eu a observava.
- Você é um garoto especial, Bolah. – falou enquanto conversávamos sobre vidas passadas e tapetes voadores. – Quero que você conheça um homem muito bom e vá morar com ele. Não é americano como eu, mas vive em um país muito bonito chamado Suécia.
                - Não sei não, senhora. Gosto daqui.
                - Você só gosta daqui porque não conhece os outros lugares. Quando conhecer o Sr.Ekwall, ficará encantado.
                - Não precisa ficar com dó de mim, dona. – falei, tentando parecer tão durão quanto esses personagens de filmes de velho oeste que os americanos da ONG gostavam de nos mostrar. – Sou sozinho no mundo e não há nada mais que eu possa pedir para Deus. Não com esse tanto de gente para me ajudar.
                April McCarthy me encarou. Achei que estivesse brava. Mas me deu uma beijoca na bochecha.
                - A Suécia é cheia de garotas louras. Acho que você iria gostar de lá, já que vou embora daqui uns meses. – Ela tinha um olhar sério no rosto. – A ONG não pode mais se manter.
                Fiquei tão vermelho quanto um garoto de onze anos podia ficar em situações como essa.
                - Nesse caso, senhora, irei reconsiderar seu pedido.
                - Fico feliz. O Sr.Ekwall já ouviu bastante sobre você e quer muito conhecê-lo.
                Como forma de incentivo, April McCarthy me fez homem de verdade. Deixou minha mente melada e meu pênis ereto por uma semana. Pela primeira vez na vida, consegui gozar; e foi dentro da boca brilhante e delicada da garota que salvara minha vida.
                O Sr.Ekwall era um bocado excêntrico. Segundo April, era um velho filantropo que gostava de mudar a vida das pessoas. Ele já havia ajudado doze jovens como eu; dera-lhes casa, comida, amor e educação. Também já havia ganho o prêmio Nobel, mas na época eu não tinha a mínima ideia do que isso significava.
                O velho chegou em uma bonita tarde de maio. Usava uma boina verde e óculos redondos pequenos demais para seu rosto pontudo.
                - Você sabe por que o escolhi, Bolah? – falou, apertando minha mão pela primeira vez.
                - Não, senhor. – respondi.
                - A jovenzinha April me falou que você é tão... cheio de vida. É isso que procuro em um filho.
                - Espero atender suas expectativas, senhor. Fiquei sabendo que terei doze irmãos.
                Precisei me despedir de April antes do esperado. Ela me ajudou a preencher toda a papelada da adoção. Pensava em todas as garotas louras que iria conhecer na Suécia. Mas infelizmente, já no jato particular do Sr.Ekwall eu descobri quais eram suas verdadeiras intenções.
                - Sente-se ao meu lado, Bolah. Seu nome é muito bonito, sabia disso? – Ele passou as mãos nas minhas pernas e continuou a conversa. – Quero deixar bem claro que nossa relação durará apenas dois anos. Depois disso, não o quero mais.
                Lembro que lágrimas silenciosas saíram dos meus olhos. Era tarde demais para voltar atrás e em breve eu seria abandonado novamente. Solucei e perguntei:
                - Perdão, senhor?
                Sr.Ekwall deu uma risadinha agradável.
                - Não vou te abandonar, criança, fique tranquilo. O que eu quero dizer é que nossa relação durará dois anos. Você estará livre no seu aniversário de quatorze anos. Provavelmente antes, já que garotos negros costumam crescer antes da hora.
                Engoli seco quando o Sr.Ekwall pegou em meu pênis, que estava mole e amedrontado.
            - Vou te dar uma ajudinha.
                Colou-me em seu colo e tirou minhas calças de forma que achei que fosse me dar palmadas na bunda.  Mas ao invés disso, massageou meu ânus com o dedo indicador. Depois de um tempo, percebi que meus pênis estava duro. Não sabia a razão, já aquilo era mais assustador do que ficar frente-a-frente com um leão. Mas eu estava duro; artificialmente duro.
                - Pronto! Aí está ele! Que grandão! – Sr.Ekwall chupou o dedo indicador como se tivesse chocolate na ponta. – Bolah, não quero te machucar. Quero apenas ser sua puta. Você sabe como fazer isso? Já fez antes?
                Respondi que sim. O velho tarado ficou curioso.
                - Ah é? Posso saber com quem? Algum coleguinha?
                - Com a April McCarthy. Da ONG.
                O Sr.Ekwall gargalhou de forma assustadora.
                - Eu sabia! Eu sabia que ela já tinha te experimentado! Estava nos olhos dela!
                Não falei nada. Na verdade, estava tremendo.
                - Já que é assim, quando você for me comer, quero que pense na senhorita McCarthy. Pense em suas tetas rosadas, balançando no ar!
                Foi o que eu fiz. Quieto, comecei a comer a bunda branca e gorda do Sr.Ekwall, que gemia igual uma mulherzinha no cio. Depois de meia hora, nos lavamos no chuveiro do jato.
                - Sabe, Bolah, acho que você vai gostar de Estocolmo. É uma cidade muito bonita.
                Fiz que sim com a cabeça. O Sr.Ekwall era estranhamente educado.
- Eu sou um bom homem, não me julgue pelo que acabamos de fazer. Eu só...tenho minhas necessidades.
- E vou atendê-las conforme sua vontade, senhor. – Emendei. Até então o velho fora gentil comigo. Precisava jogar conforme as regras, por mais horríveis que elas fossem.
- He he he! Eu sabia que íamos nos dar bem! Vou te dar comida e te colocar em uma boa escola. Vou pagar pela sua educação e te conseguir um trabalho importante. Os seus irmãos se tornaram personalidades ilustres no país. Graças a mim.
Quando desembarcamos em Estocolmo, o piloto me cumprimentou e me deu um aperto de mão forte demais. Era um homem negro e magro que usava óculos de aro grosso.
- Meu nome é James. Também sou filho do Sr.Ekwall.
Ele também havia comido o velho. Estava na cara. Mas estava crescido demais para o Ekwall.
- Sou Bolah. É um prazer, meu mais novo irmão.
Pousamos em uma pista em cima da mansão do Sr.Ekwall. Estocolmo era inacreditavelmente linda. Nunca imaginei que uma cidade pudesse ser tão iluminada. Outro filho de Ekwall, um negro de vinte anos chamado Gabriel, mostrou-me o meu novo quarto. Era muito espaçoso, tinha escrivaninha, uma estante lotada de livros e uma cama limpa coberta por um lençol muito branco.
Minha rotina na mansão se resumia em estudar e foder Ekwall em seu quarto, com a ajuda de instrumentos de tortura sexual. Ele pedia para que eu o amarasse em seus brinquedos e o comesse de forma violenta. Acostumei-me tanto ao sexo quanto ao choro. Era inevitável. Toda noite as lágrimas vinham me visitar. Eu queria voltar para casa. Queria o Sr.Ekwall morto. Queria comer a doce April McCarthy, ao invés de um velho veadinho.
Certa manhã eu acordei com um terrível torcicolo. Não conseguia me mexer. Gritei de dor e o Sr.Ekwall imediatamente veio até o quarto. Olhou-me com pena e perguntou:
- Algo de errado, caro Bolah?
- Meu pescoço travou. – respondi, indicando o local da dor com o dedo.
- Hugo! – gritou o Sr.Ekwall para além da porta do meu quarto. – Traga uma compressa quente e aquele analgésico que costumo tomar quando tenho dores no joelho. Rápido!
Por mais que eu detestasse meu novo pai e as coisas que ele me obrigava a fazer, foi ele quem cuidou de mim durante aquela semana. Ele foi delicado e atencioso. Mesmo depois da minha aparente melhora, ele teve sensibilidade suficiente para não exigir que eu fizesse movimentos bruscos por um tempo. Ao invés disso, se masturbava enquanto olhava fixamente em meu rosto. Naquela semana percebi que eu tinha mais poder sobre o velho do que ele sobre mim.
Só depois de dois meses ganhei a confiança do Sr.Ekwall. Antes disso, ele me dava aulas particulares em meu quarto e, as poucas vezes que saia da mansão, o fazia em sua companhia.
Nunca chegamos a falar sobre a nossa situação, o Sr.Ekwall e eu. Ele era atencioso, gentil e no final das contas, um homem de bom coração. Quando fui para a escola, ele sabia que eu não falaria nada a ninguém. Ele era um homem poderoso que criara doze exímios e bem sucedidos filhos. Mesmo se eu abrisse minha boca, quem é que iria acreditar?
            O Natal chegou num piscar de olhos. Pela primeira vez na vida participei de uma ceia. Compartilhei comidas caras e perfumadas com a minha nova família. Eu tinha doze irmãos sendo que cada um viera de uma parte diferente do globo. Tinha bastante intimidade com James, que era piloto de aviões. Ele me falava sobre como era levar a vida nos ares e me incentivava a estudar para também me tornar piloto. Era o meu sonho, voar de um lado para o outro.
                Creio que aquelas sejam as memórias mais agradáveis que tenho da minha vida: Naquela noite comemos, bebemos (embora eu tenha ficado satisfeito com meia taça de vinho), cantamos e contamos histórias. Mas a exemplo de um louvável escritor inglês, não vou me prolongar nas partes felizes. É a parte desagradável da história que as pessoas querem ouvir. A parte sobre como, meus irmãos e eu, nos tornamos os Filhos de Estocolmo.
                Quando acordei na manhã seguinte ao Natal, a casa estava vazia e árvore de natal, desmontada. Fui até a cozinha, comi algumas fritas e tomei um copo de leite. Estava me preparando para tomar banho quando ouvi um grito. Peguei uma raquete de tênis que decorava a parede do meu quarto e fui investigar.
                O quartinho com instrumentos de tortura sexual do Sr.Ekwall estava aberto. Com cuidado, me aproximei da porta. Vi que James chorava muito e segurava uma faca cheia de sangue. O corpo do Sr.Ekwall estava caído no chão, em cima de uma poça de sangue.
                James olhou em minha direção.
                - Meu Deus... Irmãozinho... Nosso pai...
                - Calma! Calma, James! Eu vou ligar para a polícia.
                - NÃO! – James berrou. – Não...! Você precisa me ajudar. Fiz isso por nós.
                Então entendi. James não encontrara o corpo. Ele matara o nosso pai. O bondoso Sr.Ekwall. Aproximei-me dele para consola-lo. Mas não consegui. Bati com a raquete em sua cabeça. Ele caiu desmaiado. Por que eu havia feito aquilo? Lembro-me da confusão que me invadiu naquele momento. Eu queria o Sr.Ekwall morto, mas minhas mãos reagiram ao contrário. Sem saber o que fazer, liguei para o celular do meu pai; mas meu pai estava morto bem na minha frente. Ouvir “Jingle Bell Rock” tocando em seu bolso me fez chorar ainda mais.
                Então liguei para meu outro irmão, Hugo, que era o filho mais próximo de Ekwall. Em cinco minutos todos meus irmãos estavam na casa. Todos se desabaram em lágrimas quando viram o corpo morto do nosso pai.
                Hugo amarrou o desmaiado James na cadeira. Quando ele acordou, estávamos todos furiosos. Gary, nosso outro irmão, enfiou um vibrador rosa da coleção de nosso pai na bunda daquele assassino miserável.Ele levou doze facadas: uma de cada irmão.
                Alguns minutos depois de James morrer, a policia chegou à mansão. Ao que parece, os vizinhos haviam ouvido berros agonizantes vindos da janela. Eu e meus irmãos fomos presos e ficamos conhecidos na mídia sueca como os Filhos de Estocolmo. Filhos de um homem que tratara suas crianças como escravos sexuais, aprisionando-as da forma mais cruel possível.
                Hoje me encontro atrás das grades. Estou bem e há mais de trinta anos busco respostas para saber o que realmente aconteceu comigo. Mas nem os dois milhares de livros que eu li me ajudaram a encontrar uma resposta. Às vezes sonho com o Sr.Ekwall e ele é um anjo. E mesmo que todos o considerem um monstro, só eu sei como as intenções daquele homem eram reais e verdadeiras. Foi por essa razão que escrevi esta história. Para que todos vocês possam reconhecer um dos maiores homens que existiu. Por favor, uma salva de palmas para o Sr.Ekwall: educador, filantropo e acima de tudo, pai.

terça-feira, 26 de junho de 2012

O Nome do Vento - Review





Edição: 1
Editora: Sextante
ISBN: 9788599296493
Ano: 2009
Páginas: 656
Tradutor: Vera Ribeiro

                Quando terminei de ler “O Nome do Vento”, lembrei-me imediatamente da dedicatória do autor, que li antes de começar o livro - “Para minha mãe, que me ensinou a amar os livros e me abriu as portas de Nárnia, Pern e a Terra Média. E para meu pai, que me ensinou que se eu pretendia fazer alguma coisa devia ir com calma e fazê-la direito.” - e tudo fez sentido.
                Não pretendo comparar Patrick Rothfuss com Tolkien ou Lewis, mas é inegável que com o tempo ele se consagrará e será tão cultuado quanto esses autores, assim como tenho certeza que sua obra se firmará como um clássico da literatura fantástica. E tudo isso porque ele o fez de forma muito minuciosa e bem-feita: Trata-se de um livro extremamente bem planejado e magistralmente bem escrito. Se você é um leitor que gosta de detalhes e histórias bem contadas, “O Nome do Vento” é um prato cheio.
                Um dos pontos altos da narrativa é que ela tinha tudo para ser maçante, chata e cansativa, mas não é. Mesmo com oscilações (não tão) constantes entre o passado e o presente (e primeira e terceira pessoa, respectivamente), a narrativa se mantêm dinâmica e única. Funciona perfeitamente para aquela história e aquele universo, e não tenho tanta certeza se funcionaria com outras histórias e outros autores, muito menos para uma adaptação para o cinema ou televisão.
                Os personagens são psicologicamente bem construídos e complexos até onde podem chegar, já que a maior parte do livro é narrada em primeira pessoa. A primeira parte da “Crônica do Matador do Rei” é uma ótima introdução para a história de Kvothe, que no tempo presente da história é visto como uma lenda em seu mundo. Há outro personagem elementar para a história, chamado de Cronista, que ouve a história de Kvothe e a escreve para que o mundo possa saber as verdades de sua vida. Através dessa relação entre os dois personagens, ficamos sabendo o que Kvothe fez para se tornar a lenda que é - uma sacada genial do autor, já que a maneira pela qual Kvothe constrói sua reputação é admirável.
                O universo do livro é tão bem detalhado que precisa de notas da tradutora para explicar sobre seu sistema monetário e calendário. Nada que seja difícil de entender ou atrapalhe a leitura, mas são detalhes que deixam o livro ainda mais charmoso e bem elaborado.
Não posso deixar de falar sobre a ótima tradução e o trabalho impecável da Editora “Arqueiro”. Há tempos não via um trabalho tão bem feito, principalmente em uma obra dessa proporção. “O Nome do Vento” propõe contar uma boa história e é exatamente isso que ele faz. Com boas doses de romance, mistério e aventura, é uma experiência única que recomendo a todos que apreciam a boa leitura. 

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Como Atirar Flechas em Garotas de Vidro


1º Dia


   Fumava meu primeiro cigarro, temia que o cheiro impregnasse. Sacudi a cabeça em discordância às palavras de Alan, aparentemente o maluco da classe. Ele fazia um discurso contra o capitalismo, o sistema de merda. Enquanto Alan vociferava baboseiras, percebi seu ódio pela policia e pelos playboys. Fato no mínimo engraçado, já que só conversávamos porque aquele era nosso primeiro dia de aula na faculdade particular.

   Três outros calouros ouviam o discurso com atenção, maravilhados. As palavras saiam encantadas da boca daquele exímio orador. Minha cabeça balançava para os lados, inconsciente. Estávamos todos fumando cigarros que vieram do maço de Lucky Strike de Alan. Fumar me deixava calmo, mas não gostava do cheiro.

   Nossos cigarros acabaram quase ao mesmo tempo. Alan jogou o toco no chão e pisou em cima. Nós quatro, os ouvintes, fizemos o mesmo. Nenhum de nós havia fumado antes. Alan olhou para mim e perguntou meu nome. Ninguém sabia o nome de ninguém, mas por alguma razão todos sabiam o nome de Alan.

-    Hélio. – respondi, seco. Porque o cigarro deixara minha boca seca.

-   Tive um brother que tinha o seu nome. Salve Helinho! Tá no céu agora. – Não consigo descrever a maneira atípica que Alan gesticulou naquele momento. Uma coisa das ruas.

   Eu era o único gordo do grupo. Tinha os olhos exageradamente claros e meu cabelo era tão louro e armado que os cachos se assemelhavam a uma colméia. Alan era magro e fazia você se perguntar se ele era mesmo descendente de japoneses; usava roupas tão estranhas e largas que não dava para saber. Os outros dois caras eram bem normais. Um tinha cara de bobo, o outro não. A garota pintava o cabelo de vermelho e exagerava no lápis de olho.

-    Nunca conheci nenhum Hélio antes. Que nome de velho. – A ruiva se manifestou pela primeira vez, enquanto acendia outro cigarro.

-    É o que dizem. – retruquei, ainda seco. Precisava encontrar um bebedouro. Aquele campus era enorme e ainda não havia achado nenhum.

-    Mas você tem cara Hélio.


3º Dia


-    Ouvi falar que todo homem deveria experimentar massagem na próstata.

-    Você já experimentou, Alan? – perguntei tão seco quanto o cigarro podia me deixar.

-    Não, mas se algum dia rolar, rolou.

   Daniela, que havia tingido o cabelo de azul, riu e apertou a bunda de Alan. Aquele era meu destino. Meus próximos quatro anos seriam gastos com aquelas quatro pessoas no pátio dos fumantes. A tão almejada experiência universitária.



5º Dia

-    Hoje é sexta-feira, dia de tomar breja. – gritou Alan, enquanto espreguiçava e pulava.

   Fomos para um dos bares ao lado da faculdade. “O Mata Aulas” era um boteco bem tradicional, bem brasileiro. Estava mais cheio de alunos do que a faculdade. Muita menina gostosa, vestidas como vagabundas. Fiquei com a mão na bunda de uma enquanto esperava as bebidas no balcão e ela nem ligou.

   Bebi cerveja por falta de dinheiro, pois não gostava muito do sabor. Bebi para ficar leve e tentei conversar com as garotas. Meus braços suados tremiam. Quase sempre elas se viravam, como se fossem surdas e cegas.

   Quando voltei à mesa, Alan deu um tapinha em minhas costas.

-    Quer que eu te mostre como se faz? Vira esse copo que eu te mostro.

   Virei.

-    Observe o mestre.

   Alan, dançando o moonwalk, interrompeu um grupo de três garotas gostosas. Ele gesticulava como se fosse culpado de alguma coisa e dava risadinhas, enquanto apontava para a garota mais bonita do grupo. As três riram. Ele beijou cada uma delas no rosto e tirou o celular do bolso. A garota mais bonita sussurrou qualquer coisa no ouvido dele. Ele anotou o telefone dela, com sucesso. Ao voltar à mesa, me disse:

-    Viu como se faz? Falta espontaneidade em você, Helinho. Até seu nome é chato.

-    Eu vi. Você fez de tudo, até pegou o número dela. Poxa! Mas não a atingiu com uma flecha.

-    O quê? Atingir com flecha, tá pirado?

-    Sua primeira falha foi a escolha errônea da vítima. – falei com a voz seca, enquanto fumava o sexto cigarro da noite. – A segunda falha foi a técnica empregada.

-    Você é daqueles caras apaixonados, que ficou atrás da mesma menina durante todo o colegial? Tenho certeza que você não conseguiu pegar ninguém.

   Fiz que não com a cabeça. Levantei-me e simulei os gestos que um arqueiro faz antes de atirar. Lancei a flecha e ela passou. Atingi a cabeça. A garotar era alta, com os cabelos tingidos de louro e a bunda comprida. Depois de algum tempo, ela se virou em minha direção. Os olhos levemente puxados fez com que a provável vagabunda se transformasse em uma garota meiga. Soube que o tiro fora certeiro. Chamei-a “Desastre”.


9º Dia


   Meus amigos desistiram de tentar entender, mas meus tiros não têm nada a ver com os tiros dos cupidos. Afinal de contas, eu não fazia com que elas se apaixonassem por mim. Eu apenas caçava garotas de vidro, frágeis como um copo americano de cerveja.

   Quando Desastre passava, meus olhos se enchiam de vida. Olhava para dentro de seus olhos e ela olhava para dentro dos meus. Éramos de salas diferentes e saímos ao mesmo tempo e dividimos o mesmo bebedouro. Esperei enquanto ela se abaixava para beber um pouco d’água. Reparei em sua bunda. Era impossível que uma garota tão meiga tivesse a bunda tão bonita.

   Desastre se ergueu do bebedouro, virou-se, me encarou e caminhou quieta de volta à sua sala. Mesmo que eu não soubesse o nome dela e ela não soubesse o meu, ela sentira o tiro certeiro em sua cabeça. Essas coisas são tão inacreditáveis que naquele dia resolvi deixar de ser gordo.



16º Dia


   Estava menos inchado naquela semana. Ainda gordo. Desastre continuava passando, perfumada; trocávamos olhadelas quase sempre. Espero que ela tenha reparado em como o meu papo havia murchado.

   Ansiava a hora certa para trocar a nossas primeiras palavras. Essas coisas precisam de timing, senão não funciona. Desastre comia uma maçã todo intervalo, enquanto eu e meus colegas fumávamos sentados em mesas debaixo de jabuticabeiras, no pátio dos fumantes.

-    Detesto o professor Daniel. Vamos matar a próxima aula? – Alan parecia um pouco entediado.

-    Nunca imaginei que matar aulas faria tão mal ao meu pulmão. – respondi, sem perceber o que estava falando.

-    O quê?

-    Tudo bem, isso quer dizer que vou matar a droga da aula.

   Desastre passou umas duas vezes, mas não me olhou. Não me olhava quando eu estava fumando ou quando Alan estava ao meu lado. Aquilo me deixava excitado. Creio que essa tenha sido uma das últimas vezes em que conversei com Alan e fumei um cigarro. Ninguém entende a lógica do Desastre, mas eu bem sei que faz todo o sentido.



25º Dia


   Esperava ansioso por Desastre na mesa do restaurante japonês. Trajava um terno preto e uma camiseta polo por baixo. Quando ela chegou, beijei seu rosto e iniciamos nossa primeira conversa de verdade.

-    Quero te pedir um favor, Luísa.

-    Não tema, Hélio. Peça.

-    Seu nome é Desastre.

-    Como assim?

-    Foi esse o nome que te dei quando atirei em você.

-    Atirou em mim? Explica direito esse negócio. – Desastre ria, como se de uma forma bem excêntrica eu fosse encantador.

-    Aconteceu em uma sexta-feira, no bar. Eu me ergui, atirei a flecha e você passou na frente. Algum tempo depois você se virou e meu coração bateu tão forte que você soube que era minha presa.

-    Você não pode acreditar nisso... ou pode?

-    Não só acredito como tenho certeza que foi por conta daquele tiro que estamos sentados aqui hoje. Afinal, o que você quer pedir?

   Desastre lia o cardápio, confusa.

-    Essa é minha primeira experiência com comida japonesa. Você escolhe.

-    Tudo bem, Desastre. Garçom, aqui, garçom! Traga a barca número quatro, por favor.

   O garçom retirou os cardápios de nossas mãos.

-    Esse era o meu sonho. Um primeiro encontro decente com um uma garota maravilhosa. Não preciso de mais nada.

-    Você sonha muito baixo, então. Meu sonho é ser muito rica e muito feliz.

-    Feliz? O que mais você precisa para ser feliz?

-    Preciso voltar no tempo, na verdade.

-    Explica melhor.

-    Oras, queria ter me tornado uma bailarina, mas não há mais tempo.

-    Talvez haja, Desastre. Talvez haja.

   Balancei a taça de vinho que tinha pedido enquanto esperava.

-    Se vai me chamar de Desastre, me explique essa sua técnica estranha. Como exatamente você atirou em mim?

-    Quer mesmo que eu lhe ensine a atirar flechas em garotas de vidro?

-    Claro. Quero entender porque você me chama de Desastre, se na verdade sou um amor de pessoa.

   Dei uma risada.

-    Tudo bem. Se levante. Lição número um: encontre o alvo.

   Desastre apontou para uma garota negra sentada ao nosso lado.

-    Agora posicione. Isso mesmo! Parabéns, desse jeito.

   Parecíamos um casal de loucos. Eu ajudava Desastre a se posicionar e ao mesmo tempo a tocava na bunda com meu membro.

-    Respire fundo e atire. Vou me sentar.

   No momento que Desastre atirou, a garota se levantou e saiu.

-    Droga. Ela foi ao banheiro. Queria tanto conquistar seu coração.

-    Da próxima vez certifique-se que o alvo permaneça parado.

   Desastre fez beicinho.

-    Não esquente, essa foi sua primeira lição. Ainda tem muito a aprender.

   Aquela noite de peixe cru e risadas fora uma das mais felizes da minha vida.



Último Dia


   Não importa quando aconteceu. Pode ter sido um mês após o nosso primeiro encontro, ou dez anos depois. O que importa é que aconteceu.

   Segui-a por cerca de meia hora. Seu carro seminovo estacionou em frente uma casa enorme com uma faixada de granito enfeitada por duas gárgulas. O jardim de frente era protegido por uma guarita, enquanto uma longa esteira de madeira se estendia até a porta da casa, que ficava em uma parte mais elevada. Mesmo com todo o luxo, o lugar parecia com um cenário de filme de horror.

   Ela desceu do carro, acendeu um charuto e olhou para mim com um olhar tão desdenhoso quanto triste. Seus lábios lentos e sensuais pronunciaram as palavras corretas. Sai do meu opala velho e caminhei até a frente da casa.

   O charuto de Desastre era quase tão perfumado quanto ela; o cabelo Chanel recém-cortado deixava-a mais velha. Aquela era a provação final. Tirei uma flecha da mochila e ela examinou.

-    Está preparado para me ensinar a última lição? – Não me deixou responder e me lascou um beijo tão lascivo quanto demorado. Apalpei sua bunda, emocionado.

   Pulamos a guarita como larápios fugitivos. Nossos passos eram pesados. TOC TOC TOC. A esteira parecia não ter fim. Uma coruja pousada em um carvalho velho piou. Entreolhamos e começamos a rir. Uma espécie de piada interna nossa. Desastre estava tão vermelha, tão cheia de vida. Ouvia-se apenas o silêncio e os passos, ecoando pela última vez.

   Abri as portas da casa, e como o bom cavalheiro que sou, fiz questão que a dama entrasse primeiro. Com um leve toque no interruptor, quarenta lâmpadas se acenderam. Subimos a escada e entramos em um hall repleto de móveis antigos e empoeirados. Ela se sentou em um divã vermelhou e dourado e se despiu. Seus seios eram pequenos e redondos e sua vagina estava depilada; parecia um vulcão em forma de mulher, mas não estávamos ali para transar. Despi-me também. Peguei o arco, as flechas e o taco de baseball.

-    Essa é a última lição de como atirar flechas em garotas de vidro. – anunciei. - Está preparada?

   Desastre sorriu, cheia de malicia. Abri as portas bem trabalhadas em ouro que davam para um salão de festa sofisticado, cheio de classe. As vozes na sala eram agudas e desesperadas. Gritos que só podiam vir do fundo do ovário de uma mulher. As garotas também batiam nas paredes e nas portas de metal das sacadas.

-    Coloque o capacete. – sugeri.

   Dessa vez mais de setenta lâmpadas se acenderam, a maioria erguida em lustres de cristal.

-    Primeiro o taco de baseball. Vou esperar até que quebre todas.

   Desastre correu pelo salão atrás das cinco bailarinas adolescentes. Elas fugiam, arranhavam e acabavam com suas gargantas. O nylon cor-de-rosa se despedaçava com a bagunça. Pulavam de mesa em mesa. A primeira vítima foi pega quando seu tutu italiano ficou preso na quina de uma adega de vinho. Desastre delicadamente quebrou suas pernas com o taco de baseball e correu atrás das outras quatro.

   Enquanto eu ensaiava tiros de flechas, outra bailarina se esbarrou em mim. Soquei-a no rosto e Desastre a quebrou.

-    POR FAVOR, NÃO ME MATE. POR FAVOR, POR FAVOR, POR FAV... – Espanquei o rosto da garota até que se calasse.

   As três bailarinas que restaram foram encurraladas em um canto; juntas se ajoelharam e começaram a rezar. Desastre tirou o capacete e acariciou os cabelos. Sua franja reta e seus olhos centrados fizeram-me ter uma ereção. Sabia que não era hora disso. Olhei para cima para me recompor; ouvi o som dos ossos se estilhaçando e os berros infantis e agonizantes.

   Ajudei Desastre a arrastar as cinco garotas quebradas para cima da mesa de bilhar de feltro vermelho. Fiz uma massagem nas costas de minha amada, lhe entreguei o arco e coloquei cinco flechas à sua frente.

-    Cinco tiros certeiros. Se você errar, falhará. Esse é o seu sonho, não se esqueça.

   Ela não errou. As garotas caíram mortas na mesa, tão frágeis que pareciam taças de vinho explodidas no chão. Desastre abraçou-as todas e agradeceu. Fodemos no meio dos corpos e depois, com a ajuda de um segundo arco, morremos por amor, em busca de um sonho perdido.