sexta-feira, 11 de maio de 2012

Como Atirar Flechas em Garotas de Vidro


1º Dia


   Fumava meu primeiro cigarro, temia que o cheiro impregnasse. Sacudi a cabeça em discordância às palavras de Alan, aparentemente o maluco da classe. Ele fazia um discurso contra o capitalismo, o sistema de merda. Enquanto Alan vociferava baboseiras, percebi seu ódio pela policia e pelos playboys. Fato no mínimo engraçado, já que só conversávamos porque aquele era nosso primeiro dia de aula na faculdade particular.

   Três outros calouros ouviam o discurso com atenção, maravilhados. As palavras saiam encantadas da boca daquele exímio orador. Minha cabeça balançava para os lados, inconsciente. Estávamos todos fumando cigarros que vieram do maço de Lucky Strike de Alan. Fumar me deixava calmo, mas não gostava do cheiro.

   Nossos cigarros acabaram quase ao mesmo tempo. Alan jogou o toco no chão e pisou em cima. Nós quatro, os ouvintes, fizemos o mesmo. Nenhum de nós havia fumado antes. Alan olhou para mim e perguntou meu nome. Ninguém sabia o nome de ninguém, mas por alguma razão todos sabiam o nome de Alan.

-    Hélio. – respondi, seco. Porque o cigarro deixara minha boca seca.

-   Tive um brother que tinha o seu nome. Salve Helinho! Tá no céu agora. – Não consigo descrever a maneira atípica que Alan gesticulou naquele momento. Uma coisa das ruas.

   Eu era o único gordo do grupo. Tinha os olhos exageradamente claros e meu cabelo era tão louro e armado que os cachos se assemelhavam a uma colméia. Alan era magro e fazia você se perguntar se ele era mesmo descendente de japoneses; usava roupas tão estranhas e largas que não dava para saber. Os outros dois caras eram bem normais. Um tinha cara de bobo, o outro não. A garota pintava o cabelo de vermelho e exagerava no lápis de olho.

-    Nunca conheci nenhum Hélio antes. Que nome de velho. – A ruiva se manifestou pela primeira vez, enquanto acendia outro cigarro.

-    É o que dizem. – retruquei, ainda seco. Precisava encontrar um bebedouro. Aquele campus era enorme e ainda não havia achado nenhum.

-    Mas você tem cara Hélio.


3º Dia


-    Ouvi falar que todo homem deveria experimentar massagem na próstata.

-    Você já experimentou, Alan? – perguntei tão seco quanto o cigarro podia me deixar.

-    Não, mas se algum dia rolar, rolou.

   Daniela, que havia tingido o cabelo de azul, riu e apertou a bunda de Alan. Aquele era meu destino. Meus próximos quatro anos seriam gastos com aquelas quatro pessoas no pátio dos fumantes. A tão almejada experiência universitária.



5º Dia

-    Hoje é sexta-feira, dia de tomar breja. – gritou Alan, enquanto espreguiçava e pulava.

   Fomos para um dos bares ao lado da faculdade. “O Mata Aulas” era um boteco bem tradicional, bem brasileiro. Estava mais cheio de alunos do que a faculdade. Muita menina gostosa, vestidas como vagabundas. Fiquei com a mão na bunda de uma enquanto esperava as bebidas no balcão e ela nem ligou.

   Bebi cerveja por falta de dinheiro, pois não gostava muito do sabor. Bebi para ficar leve e tentei conversar com as garotas. Meus braços suados tremiam. Quase sempre elas se viravam, como se fossem surdas e cegas.

   Quando voltei à mesa, Alan deu um tapinha em minhas costas.

-    Quer que eu te mostre como se faz? Vira esse copo que eu te mostro.

   Virei.

-    Observe o mestre.

   Alan, dançando o moonwalk, interrompeu um grupo de três garotas gostosas. Ele gesticulava como se fosse culpado de alguma coisa e dava risadinhas, enquanto apontava para a garota mais bonita do grupo. As três riram. Ele beijou cada uma delas no rosto e tirou o celular do bolso. A garota mais bonita sussurrou qualquer coisa no ouvido dele. Ele anotou o telefone dela, com sucesso. Ao voltar à mesa, me disse:

-    Viu como se faz? Falta espontaneidade em você, Helinho. Até seu nome é chato.

-    Eu vi. Você fez de tudo, até pegou o número dela. Poxa! Mas não a atingiu com uma flecha.

-    O quê? Atingir com flecha, tá pirado?

-    Sua primeira falha foi a escolha errônea da vítima. – falei com a voz seca, enquanto fumava o sexto cigarro da noite. – A segunda falha foi a técnica empregada.

-    Você é daqueles caras apaixonados, que ficou atrás da mesma menina durante todo o colegial? Tenho certeza que você não conseguiu pegar ninguém.

   Fiz que não com a cabeça. Levantei-me e simulei os gestos que um arqueiro faz antes de atirar. Lancei a flecha e ela passou. Atingi a cabeça. A garotar era alta, com os cabelos tingidos de louro e a bunda comprida. Depois de algum tempo, ela se virou em minha direção. Os olhos levemente puxados fez com que a provável vagabunda se transformasse em uma garota meiga. Soube que o tiro fora certeiro. Chamei-a “Desastre”.


9º Dia


   Meus amigos desistiram de tentar entender, mas meus tiros não têm nada a ver com os tiros dos cupidos. Afinal de contas, eu não fazia com que elas se apaixonassem por mim. Eu apenas caçava garotas de vidro, frágeis como um copo americano de cerveja.

   Quando Desastre passava, meus olhos se enchiam de vida. Olhava para dentro de seus olhos e ela olhava para dentro dos meus. Éramos de salas diferentes e saímos ao mesmo tempo e dividimos o mesmo bebedouro. Esperei enquanto ela se abaixava para beber um pouco d’água. Reparei em sua bunda. Era impossível que uma garota tão meiga tivesse a bunda tão bonita.

   Desastre se ergueu do bebedouro, virou-se, me encarou e caminhou quieta de volta à sua sala. Mesmo que eu não soubesse o nome dela e ela não soubesse o meu, ela sentira o tiro certeiro em sua cabeça. Essas coisas são tão inacreditáveis que naquele dia resolvi deixar de ser gordo.



16º Dia


   Estava menos inchado naquela semana. Ainda gordo. Desastre continuava passando, perfumada; trocávamos olhadelas quase sempre. Espero que ela tenha reparado em como o meu papo havia murchado.

   Ansiava a hora certa para trocar a nossas primeiras palavras. Essas coisas precisam de timing, senão não funciona. Desastre comia uma maçã todo intervalo, enquanto eu e meus colegas fumávamos sentados em mesas debaixo de jabuticabeiras, no pátio dos fumantes.

-    Detesto o professor Daniel. Vamos matar a próxima aula? – Alan parecia um pouco entediado.

-    Nunca imaginei que matar aulas faria tão mal ao meu pulmão. – respondi, sem perceber o que estava falando.

-    O quê?

-    Tudo bem, isso quer dizer que vou matar a droga da aula.

   Desastre passou umas duas vezes, mas não me olhou. Não me olhava quando eu estava fumando ou quando Alan estava ao meu lado. Aquilo me deixava excitado. Creio que essa tenha sido uma das últimas vezes em que conversei com Alan e fumei um cigarro. Ninguém entende a lógica do Desastre, mas eu bem sei que faz todo o sentido.



25º Dia


   Esperava ansioso por Desastre na mesa do restaurante japonês. Trajava um terno preto e uma camiseta polo por baixo. Quando ela chegou, beijei seu rosto e iniciamos nossa primeira conversa de verdade.

-    Quero te pedir um favor, Luísa.

-    Não tema, Hélio. Peça.

-    Seu nome é Desastre.

-    Como assim?

-    Foi esse o nome que te dei quando atirei em você.

-    Atirou em mim? Explica direito esse negócio. – Desastre ria, como se de uma forma bem excêntrica eu fosse encantador.

-    Aconteceu em uma sexta-feira, no bar. Eu me ergui, atirei a flecha e você passou na frente. Algum tempo depois você se virou e meu coração bateu tão forte que você soube que era minha presa.

-    Você não pode acreditar nisso... ou pode?

-    Não só acredito como tenho certeza que foi por conta daquele tiro que estamos sentados aqui hoje. Afinal, o que você quer pedir?

   Desastre lia o cardápio, confusa.

-    Essa é minha primeira experiência com comida japonesa. Você escolhe.

-    Tudo bem, Desastre. Garçom, aqui, garçom! Traga a barca número quatro, por favor.

   O garçom retirou os cardápios de nossas mãos.

-    Esse era o meu sonho. Um primeiro encontro decente com um uma garota maravilhosa. Não preciso de mais nada.

-    Você sonha muito baixo, então. Meu sonho é ser muito rica e muito feliz.

-    Feliz? O que mais você precisa para ser feliz?

-    Preciso voltar no tempo, na verdade.

-    Explica melhor.

-    Oras, queria ter me tornado uma bailarina, mas não há mais tempo.

-    Talvez haja, Desastre. Talvez haja.

   Balancei a taça de vinho que tinha pedido enquanto esperava.

-    Se vai me chamar de Desastre, me explique essa sua técnica estranha. Como exatamente você atirou em mim?

-    Quer mesmo que eu lhe ensine a atirar flechas em garotas de vidro?

-    Claro. Quero entender porque você me chama de Desastre, se na verdade sou um amor de pessoa.

   Dei uma risada.

-    Tudo bem. Se levante. Lição número um: encontre o alvo.

   Desastre apontou para uma garota negra sentada ao nosso lado.

-    Agora posicione. Isso mesmo! Parabéns, desse jeito.

   Parecíamos um casal de loucos. Eu ajudava Desastre a se posicionar e ao mesmo tempo a tocava na bunda com meu membro.

-    Respire fundo e atire. Vou me sentar.

   No momento que Desastre atirou, a garota se levantou e saiu.

-    Droga. Ela foi ao banheiro. Queria tanto conquistar seu coração.

-    Da próxima vez certifique-se que o alvo permaneça parado.

   Desastre fez beicinho.

-    Não esquente, essa foi sua primeira lição. Ainda tem muito a aprender.

   Aquela noite de peixe cru e risadas fora uma das mais felizes da minha vida.



Último Dia


   Não importa quando aconteceu. Pode ter sido um mês após o nosso primeiro encontro, ou dez anos depois. O que importa é que aconteceu.

   Segui-a por cerca de meia hora. Seu carro seminovo estacionou em frente uma casa enorme com uma faixada de granito enfeitada por duas gárgulas. O jardim de frente era protegido por uma guarita, enquanto uma longa esteira de madeira se estendia até a porta da casa, que ficava em uma parte mais elevada. Mesmo com todo o luxo, o lugar parecia com um cenário de filme de horror.

   Ela desceu do carro, acendeu um charuto e olhou para mim com um olhar tão desdenhoso quanto triste. Seus lábios lentos e sensuais pronunciaram as palavras corretas. Sai do meu opala velho e caminhei até a frente da casa.

   O charuto de Desastre era quase tão perfumado quanto ela; o cabelo Chanel recém-cortado deixava-a mais velha. Aquela era a provação final. Tirei uma flecha da mochila e ela examinou.

-    Está preparado para me ensinar a última lição? – Não me deixou responder e me lascou um beijo tão lascivo quanto demorado. Apalpei sua bunda, emocionado.

   Pulamos a guarita como larápios fugitivos. Nossos passos eram pesados. TOC TOC TOC. A esteira parecia não ter fim. Uma coruja pousada em um carvalho velho piou. Entreolhamos e começamos a rir. Uma espécie de piada interna nossa. Desastre estava tão vermelha, tão cheia de vida. Ouvia-se apenas o silêncio e os passos, ecoando pela última vez.

   Abri as portas da casa, e como o bom cavalheiro que sou, fiz questão que a dama entrasse primeiro. Com um leve toque no interruptor, quarenta lâmpadas se acenderam. Subimos a escada e entramos em um hall repleto de móveis antigos e empoeirados. Ela se sentou em um divã vermelhou e dourado e se despiu. Seus seios eram pequenos e redondos e sua vagina estava depilada; parecia um vulcão em forma de mulher, mas não estávamos ali para transar. Despi-me também. Peguei o arco, as flechas e o taco de baseball.

-    Essa é a última lição de como atirar flechas em garotas de vidro. – anunciei. - Está preparada?

   Desastre sorriu, cheia de malicia. Abri as portas bem trabalhadas em ouro que davam para um salão de festa sofisticado, cheio de classe. As vozes na sala eram agudas e desesperadas. Gritos que só podiam vir do fundo do ovário de uma mulher. As garotas também batiam nas paredes e nas portas de metal das sacadas.

-    Coloque o capacete. – sugeri.

   Dessa vez mais de setenta lâmpadas se acenderam, a maioria erguida em lustres de cristal.

-    Primeiro o taco de baseball. Vou esperar até que quebre todas.

   Desastre correu pelo salão atrás das cinco bailarinas adolescentes. Elas fugiam, arranhavam e acabavam com suas gargantas. O nylon cor-de-rosa se despedaçava com a bagunça. Pulavam de mesa em mesa. A primeira vítima foi pega quando seu tutu italiano ficou preso na quina de uma adega de vinho. Desastre delicadamente quebrou suas pernas com o taco de baseball e correu atrás das outras quatro.

   Enquanto eu ensaiava tiros de flechas, outra bailarina se esbarrou em mim. Soquei-a no rosto e Desastre a quebrou.

-    POR FAVOR, NÃO ME MATE. POR FAVOR, POR FAVOR, POR FAV... – Espanquei o rosto da garota até que se calasse.

   As três bailarinas que restaram foram encurraladas em um canto; juntas se ajoelharam e começaram a rezar. Desastre tirou o capacete e acariciou os cabelos. Sua franja reta e seus olhos centrados fizeram-me ter uma ereção. Sabia que não era hora disso. Olhei para cima para me recompor; ouvi o som dos ossos se estilhaçando e os berros infantis e agonizantes.

   Ajudei Desastre a arrastar as cinco garotas quebradas para cima da mesa de bilhar de feltro vermelho. Fiz uma massagem nas costas de minha amada, lhe entreguei o arco e coloquei cinco flechas à sua frente.

-    Cinco tiros certeiros. Se você errar, falhará. Esse é o seu sonho, não se esqueça.

   Ela não errou. As garotas caíram mortas na mesa, tão frágeis que pareciam taças de vinho explodidas no chão. Desastre abraçou-as todas e agradeceu. Fodemos no meio dos corpos e depois, com a ajuda de um segundo arco, morremos por amor, em busca de um sonho perdido.

Um comentário:

  1. Um surreal mesclado de romantismo simbólico, texto, ao mesmo tempo, claro x extremamente subjetivo, metáforas interessantes que levam à uma ''gostosa'' curiosidade, parabéns.

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