terça-feira, 17 de julho de 2012

Entre Redemoinhos e Cães Perdidos




Júlio Navarro cortou a grama do campo, colheu as verduras da horta, recolheu os ovos das galinhas e voltou pra casa para almoçar. Sua esposa Glória o esperava com avental e panelas quentes. Felipe, seu filho de onze anos, o recebeu com um abraço. Rita, sua filha de sete anos, estava distraída e procurava por alguma coisa em todos os cantos da casa.
                - U que ocê tanto prucura, minha fia? – perguntou o Júlio.
                - É u Totó! Ele sumiu, se‘cridita? – Rita soou tão meiga que Júlio até esqueceu do vazio da barriga e se pôs a procurar o cachorro perdido.
                Ele fez uma busca nos arredores da terra. Sua pequena rocinha era rodeada por mato, e por essa razão precisou protegê-la com cercas de arame. Júlio procurou por Totó no quintal, no galinheiro, na horta, no pomar, no pastinho e até no cabriteiro, lugar em que o cão pequenino gostava de descansar e se esconder das tempestades.
                Júlio já havia desistido de encontrar pistas quando percebeu o que ocorrera. Próximo ao celeiro, em uma das extremidades da cerca, havia um buraco que não fora cavado por mãos de homens. Totó havia escapado para o mato.
                Quando o pai foi confrontar a filha e dizer-lhe o ocorrido, ele quis mentir. Mas não o fez, principalmente porque sabia que iria atrás do cão.
                - U Totó fugiu pru mato, fia. Dexa o pai armuçar que ele vai corrê atrás du danado.
                Uma montanha de arroz e feiJúlio, três bifes mal passados e dois ovos fritos, com a gema tão frágil quanto um nenê recém-saído da barriga da mãe: essa foi a refeição feita por Júlio Navarro antes de iniciar o que provavelmente seria a jornada mais perigosa da sua vida. Mas para que essa jornada tivesse êxito, ela necessitava de outro aventureiro.
                - Pai! Posso i pru mato cocê? – perguntou Felipe, já colocando o boné que havia ganhado de um político em sua viagem para a cidade.
                - Sei não, fio... I si o Totó foi pra muito longi?
                Glória, a esposa de Júlio, interrompeu a conversa.
                - Si ocê num fo vortá tardi, leva u minino pra da umas vortinha, Júlio.
                - Uai... intão tá. – A esposa conseguia convencer o mineirinho de qualquer coisa. Se a Glória falasse, estava falado. - Vai carçá a butina, fio.
                Enquanto Felipe calçava as botinas, Rita perguntou ao pai:
                - Se prometi que vai trazê u Totó de vorta? Eu quero brinca cum ele di manhãzinha.
                Júlio não sabia se devia prometer algo que não sabia se seria capaz de cumprir. Mas como se tratava de sua filha, ele resolveu arriscar.
                - Num posso prometê nada, fia. Mais vo tenta trazê ele de vorta. – Júlio agradou Rita com um cafuné.
                Felipe colocou sua roupa mais bonita. Ele costumava fugir para o mato, mas nunca ia para muito longe. E aquela ocasião tinha um tom de aventura, diferente dos passeios rasos e sem objetivos em que costumava fazer. A mãe errara: Não se tratava de um simples passeio, mas sim de uma expedição. Felipe precisava trazer Totó de volta para casa. Antes de sair, ele sussurrou no ouvido da irmã:
                - Ritinha, eu vo trazê u Totó de vorta. Eu prometo.
                Pai e Filho se agacharam e passaram pelo buraco que Totó cavara. Júlio olhou para cima e balançou a cabeça, aprovando o sol fraco daquela tarde. Felipe também olhou para cima, mas sem saber por quê. Só estava repetindo o que o pai fizera.
                - Fio, é mió a gente corrê pra pegá esse cão. Si anoitecê tamo lascado.
                Caminharam com passos calados. A vegetação estava fechada e densa. As pegadas de Totó eram inconstantes, mas havia uma trilha.
                - Ninguém consegui fugí sem sê encontrado, fio. As pessoa dexa rastro. – disse Júlio, apontando para as pegadas do cachorro.
                - Eu vo pegá u bicho inda vivo, se vai vê.
                - Ispero, fião. A Ritinha vai fica braba cu’a gente se num encontrarmo u Totó.
                - Pra ondi cê acha que ele foi?
                - Ah... Num sei. Achu que ele só quiria dá uma vortinha. Mais essas mata são pirigosa. Tão cheia di lobo guará, di onça i di cobra. U Totó é pititin dimais, é bicho indefeso.
                - Mais ele sabe sê bravu! Ô si sabe!
                - Ah isso ele sabe mes... Óia lá fio! Nu buraco daquela árvre!
                Felipe avistou o cão e disparou até a árvore.
                - Vem cá! Vem cá Totó!
                Quando chegou na árvore, viu um pequeno cãozinho indefeso. Ele era preto com as manchas brancas. Estava amedrontado e encolhido.
                - Ixiiiii.... Esse daí num é nosso cachorro não.
                - Uai... que qui um bichim como ocê tá fazendo aí? – perguntou Júlio, chamando o cão com a mão. – Vem cá... num pricisa tê medo não, nóis é gente boa.
                - Ele tá cum medo, pai.
                O cão começou a choramingar. Júlio tirou um pedaço de pano da mochila e o embrulhou nele.
                - Carminha... Carminha... Nóis vai cuidá docê.
                - Dexa eu passa a mão um poco, pai?
                - Tá baum, mais toma cuidado. O bichinho tá cum medo.
                Felipe acariciou a cabeça do pobre animal.
                - Se num viu um cão um poco mais incorpado que ocê? – perguntou o garoto, esperando que o cão começasse a falar ou apontasse para uma direção.
                - Tó ele procê, fio. Toma cuidado. Vamo continua procurano o Totó.
                A vegetação densa havia tampado o sol. O mormaço se extinguia. Júlio e Felipe estavam cada vez mais preocupados. Hora ou outra ouviam lamentos em forma de latidos e vislumbres de cães perdidos no meio do mato.
                - Òia ali, pai! Òia o tanto di árvre cortada!
                - Uai... Qui que isso?
                Havia centenas de bambus cortados e um imenso buraco no meio da mata. Júlio se aproximou e percebeu que o solo fora recentemente mexido. Havia pegadas humanas que não faziam sentido.
                - Uai... Isso aí é pegada di perneta. – disse Felipe.
                - Como que um perneta desse consiguiu cortá tanta árvre, fio?
                - AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!!! – A risada rouca ecoava de todas as direções.
                - Ai meu Deus... qui foi isso, pai?
                - Vem pra perto di mim, Felipe.
                Os dois se afastaram das árvores cortadas e se esconderam debaixo de um amontoado de pedras que formavam uma espécie de pequena caverna.
                - Fião, fica aqui iscondidim. Toma conta du cachorrinho. Eu vo lá vê u que tá aconteceno.
                Sozinho, Júlio caminhou mais um bocado até ouvir o som de cachoeira e água corrente. Escondido nas flores e folhas, ele avistou o corpo de um homem na beirada de onde caia a cachoeira.
                Ao se aproximar, percebeu que fazia uns meses que o homem morrera. O corpo tinha o cabelo ruivo e a pele era muito branca e cheia de sardas; ele usava um traje de aventureiro e um chapéu grande e marrom tampava seu rosto em decomposição. Ao seu lado jazia uma peneira com os arames enferrujados.
                Júlio abriu a mochila presa ao homem morto. Encontrou dois sacos de sal, cinco garrafas com uma cruz desenhada em suas rolhas, duas pistolas, dois frascos de água, uma estaca, uma corda amarrada com alhos e duas cruzes pequenas. Examinando a arma, Júlio percebeu que as balas eram de pratas.
                Já ouvira falar daquele homem antes. Há algumas semanas os policiais bateram em sua porta e perguntaram se ele havia visto um holandês de quarenta anos andando pela região. O homem viera ao Brasil para caçar sacis e estava desaparecido. Júlio sorrira aos policiais e explicara-lhes que não havia visto nada. Depois contara a história para a família na mesa do jantar e todos riram muito. Quem é que acreditava em Saci-Pererê?
                O riso que Júlio outrora dera agora se transformava em pavor.  Os sacis haviam matado o aventureiro, que achara exatamente aquilo que procurava. Júlio se lembrou das velhas estórias que a avó contava e transferiu as garrafas do holandês para dentro de sua própria mochila. Com sorte, elas funcionariam para prender os sacis. Depois se armou com as duas pistolas e a peneira, instrumento que nas lendas eram usadas para capturar os pequenos demônios. Júlio tinha certeza que os sacis estavam por trás do desaparecimento de Totó.
                Ao caminhar mais um pouco, Júlio começou a ouvir choros caninos e risadas roucas. Fez o sinal da cruz e rezou para que Felipe permanecesse quieto no esconderijo improvisado. Rezou também para a própria segurança; para que Deus o protegesse dos demônios que estava prestes a enfrentar.
                De longe viu luzes fortes. Rastejando, furtivo como uma cascavel, Júlio se aproximou do esconderijo dos Sacis. O lugar parecia um ninho. Havia palha a bambus em todo lugar. Cerca de três sacis pitavam cachimbos em volta de uma fogueira. Eles estavam assando carne. Atrás da fogueira, havia jaulas guardando dezenas de cães. Júlio percebeu que o animal assado podia muito bem ser Totó.
                Os sacis tinham a pele muito escura e usavam tocas vermelhas. Eles tinham olhos vazios e pretos e dentes pequenos e afiados.
                Júlio não tinha um plano. Mas precisava dar um jeito de acabar com os Sacis, soltar os cachorros e, quem sabe, achar Totó. Enquanto pensava em alguma coisa, um quarto saci chegou à fogueira carregando uma criança. Era Felipe.
                - Olhem só o que eu achei, pessoal. Joguem fora essa carne ruim de cachorro. Hoje nós vamos comer bisteca de criancinha! Mahahahahahahaha!
                - AHA EHE AHA EHE HAHAHA HUHU AHAHA EHEHEEEE!!! – as risadas demoníacas dos quatro sacis ecoavam em cada folha de árvore, em cada flor tropical e em cada pedaço da alma de Júlio Navarro.
                - Seja u que Deus quisé. – sussurrou Júlio, enquanto se armava com uma das pistolas.
                Sem anunciar sua chegada, Júlio acertou um dos sacis com um tiro na cabeça. A criatura caiu instantaneamente. Os outros olharam furiosos para o homem armado. Suas bocas se tornaram maiores e seus dentes ainda mais afiados. Agora sim estavam com o aspecto de verdadeiros demônios. Um deles derrubou Júlio e a pistola foi lançada para longe.
                Espalharam-se e se transformaram em pequenos redemoinhos. Júlio tentou acertá-los novamente com a segunda pistola que carregava, mas dessa vez as balas desviaram.  Então Júlio tentou jogar a peneira em um dos redemoinhos.  O demônio ficara preso! Enquanto fugia dos outros tornados, rastejou até a peneira e capturou o saci com a garrafa.
                Os dois sacis restantes vieram para cima de Júlio. Um deles pegou um pedaço de pau no chão e deu uma pancada em sua cabeça, o deixando desmaiado. Começaram a rir freneticamente. Então...
                BUM! BUM! BUM! BUM! BUM! BUM!
                Felipe não soube quantos tiros dera, mas os dois sacis caíram mortos. Então ele jogou a pistola no chão e tentou encontrar Totó nas gaiolas, mas não o achou. Quando Júlio acordou, Felipe já havia soltado todos os outros cães e estava cabisbaixo, acariciando o cãozinho que haviam encontrado mais cedo.
                - Pai, num achei o Totó. Acho qui us sacis cumeram ele.
                Júlio, pela primeira vez na vida, não respondeu nada. Geralmente soltava ao menos um incompreendido “Uai...”. Mas dessa vez só abaixou a cabeça.
                - Eu prometi pra Ritinha que ia trazê u Totó di vorta. I agora?
                - Agora cê pricisa fazê a coisa certa. Vai tê qui pidi discurpa pra sua irmã.
                - U qui eu vô fala qui aconteceu? Ninguém vai acriditá nessa história... nesse negóciu di saci.
                - A gente pensa im otra história pelo caminho.
                Já havia anoitecido quando Júlio e Felipe começaram a caminhada de volta. Eles não disseram nada um para o outro, mas os dois estavam pensando no que falariam quando chegassem em casa.
                Quando enfim retornaram ao lar, viram Glória e Rita preocupadas, andando de um lado para o outro na varanda.
                - Pruque demoraram tanto, Júlio?  - perguntou Glória, muito brava.
                - Mãe! – falou Felipe, antes que Júlio pudesse responde. -  Nóis achô u Totó, mais ele tava tão filiz cum uma cadelinha du mato que dexamo ele lá  memo. Mai nu caminho di vorta nóis acho esse póbrizinho aqui... Tava pirdido, chorano dibaxo duma árvre.
                O irmão mais velho passou o cãozinho para a irmã mais nova, que deu um grande sorriso e abraçou o animal. Naquela noite, Felipe deveria ter se deitado na cama com medo, paranóico com as diversas criaturas sombrias que estavam soltas pelo mundo. Mas ao invés disso, ele dormiu satisfeito. Satisfeito por ter feito parte de uma expedição perigosa. Satisfeito por ter salvado a própria vida e a vida do pai. Mas acima de tudo, satisfeito por ter conseguido cumprir a promessa que havia feito à sua irmãzinha.

Um comentário:

  1. Legal. Gostei bem mais do que a história do sueco pedófilo.

    Acho que você exagerou no sotaque dos personagens. Eu sei que você tem conhecimento de causa, mas ler essa escrita por muito tempo é algo que exige um certo esforço e tira o leitor da história, que começa a reparar nas trocas fonéticas que você fez, se ele acha que elas fazem sentido, etc. Os personagens podem ter sotaque, mas acho que precisa ser representado de uma forma mais contida.

    Você podia estabelecer o desaparecimento do holandês bem mais perto do princípio da história. É legal fazer um foreshadowing as vezes. Do jeito que tá, o descobrimento do cadáver e o aparecimento dos sacis é algo muito repentino (apesar do título da história).

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